sábado, 4 de junho de 2011

Mundo antigo, mundo moderno





Uma das diferenças assinaláveis entre o mundo antigo e o mundo moderno é a relação com a abstracção. Os antigos viviam a abstracção como real, os modernos como irreal.
Os antigos eram consequentes porque a abstracção, sendo racional é, simultaneamente, ideal, moral e prática. A interrogação metafísica não era um  travão para a decisão.
Os modernos, ou os precursores da modernidade, desdenharam da abstracção pelas dúvidas que a metafísica lhes levantava e, tomando-se por realistas, procedem com incerteza, hesitação, tristeza e indefinição, 
sem ideal, não se percebendo a razão da sua presunção de pragmatismo ou de realismo.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Tópicos sobre Arquitectura


As Artes e o Tempo
Em qualquer actividade intelectual, como a arte, a investigação filosófica ou a investigação científica, o resultado, que são as obras, consubstancia, simultaneamente, o seu lugar como momento da história e o progresso mental dos seus autores.

As obras são sempre o espelho de um certo tempo, por serem o que esse tempo recebe, difunde e incrusta como presença fisionómica de si mesmo, delas se podendo deduzir uma gnoseologia de valores filosóficos, poéticos e científicos que lhe subjazem. Sabemos que nem tudo o que acontece como pretensão de ser arte é arte, ainda que tudo o que acontece, por acontecer, determine a fisionomia de um tempo que fica muitas vezes plasmado num espaço, seja o invisível espaço público feito de relações e memórias, de actos e de interpretações que a literatura regista, seja o espaço físico que é o palco de todos os acontecimentos e, por isso, também, a sua resistência ao esquecimento e ao seu esvaimento trans-geracional.

A música, a pintura e a escultura, a literatura, quer dizer, a arte, cumprem esse papel de ligar os tempos diferenciados, sob o tecto transcendente da Ideia, de que ela, a arte, se nutre, não se esgotando no tempo diferenciado, como se ele fosse independente e desligado do movimento universal.

Arquitectura e Presença
Na arte em geral, a sua presença no espaço público depende da sua continuada apresentação. Ou seja, a música está presente quando se ouve ou quando se faz ouvir, a pintura e a escultura quando estão a ser vistas, a literatura quando é lida, o teatro quando se é público, ou actor, etc. No caso da arquitectura ela é por sua própria, digamos, natureza, presente. A arquitectura é a própria presença, pois, não se concretiza sem estar construída e sendo construída é conceptualmente e intencionalmente eterna como o mundo (o que não significa que não possa ser demolida, nem que não esteja sujeita à destruição infligida pelo tempo).

A essência da arquitectura é a sua permanência no espaço para além do tempo e quanto mais ela permanecer e mais presente se afirmar, maior é a memória que liga as gerações e anula o tempo. A arquitectura é a vitória da presença contra a passagem ou a sucessão: o primado do lugar sobre o tempo, ou da memória sobre o esquecimento, ou da vida sobre a morte.

Origem da Arquitectura
Este carácter impositivo na arquitectura teve origem na necessidade de dar morada eterna aos antepassados. A origem da arquitectura é a arte tumular em que a casa que se constrói não é para os que estão vivos efemeramente, mas para os que morrendo adquirem o direito da morada eterna. O túmulo surge como a casa da alma imortal, a casa definitiva.

O sedentarismo, posteriormente, conduziu à necessidade de organizar a vida em comunidade. E a forma dessa organização corresponde ao mesmo arquétipo da arquitectura tumular: a casa é o mundo, o arquétipo do paraíso, o lugar da harmonia e do equilíbrio que compatibiliza necessidades e recursos; é, também, o lugar da realização do eu, a relação íntima com o outro que, progressivamente, se alarga do indivíduo para o casal, do casal até à família, da família até à escola e da escola até à praça, em graus relacionais cada vez mais abrangentes do privado para o público.

Da casa para a cidade e da cidade para a casa são percursos de ida e volta a cada momento da vida, da mesma forma que a cada instante vivemos e morremos, quer disso tenhamos consciência ou não.

A Casa
Da intimidade do nascer à intimidade do morrer, a cama é o altar de todas as celebrações no centro do quarto, na intimidade mais velada, discriminada ou mesmo seleccionada. Lembra-nos o quarto, que o homem é em primeiro lugar um indivíduo com um destino próprio para além de toda a vida pública que possa abraçar. O quarto é como um sacrário onde, como por uma porta, entrarmos no mundo e por onde passamos quando dele partimos. Ali é concebido, ali nasce e ali morre. É o lugar de toda a intimidade, da relação pessoal com a vida que nele flui singularmente.

A sala de jantar é, por oposição à sala de estar, o lugar da família: o centro é a mesa que significa partilha e nela se comunga o mesmo alimento. Costas direitas, posição activa, desperta, atenta. Enquanto alimenta o corpo e o restaura, comunga do pão espiritual através do convívio. O convívio íntimo da família. Já a sala de estar, actualmente, pretendida grande e espaçosa por substituição da pequena sala de visitas onde cerimoniosamente se faziam conversas de cortesia, invoca uma espécie de antecâmara da morte: os sofás são grandes e parecem camas, a lareira foi substituída pela televisão, e o estar torna-se uma espécie de isolamento em grupo que leva ao adormecimento, se não mesmo ao alheamento. A lareira é um foco de atenção e as labaredas, pela sua vitalidade abstracta, convocam pensamentos enquanto aquecem. A televisão pelo contrário hipnotiza e esvazia o cérebro porque além de criar falsas imagens que os nossos olhos ilusoriamente recriam por sugestão, não estimula a interacção intelectual pois consiste em descarregar produtos acabados e acríticos, agora chamados conteúdos, que vão sendo armazenados sem critério nem decisão própria. Acima de tudo, esmaga a vida mental: tudo é igual, repetitivo, absorvente, inconsequente, abortivo e obsolescente – um vazio no centro da sala de estar.

A Praça
Da casa para a cidade chegamos à praça, o lugar de encontro que dá origem à consciência da comunidade dos seus valores e identidade, enquanto partilha de interesses e esperanças que unem num mesmo espaço físico, num certo lugar, um conjunto de famílias. Na praça, simbolicamente, decidem-se as regras do convívio entre famílias e entre indivíduos. O que se tem de decidir é: como vão esses indivíduos exercer a sua liberdade de seres individuais num denominador comum que é o interesse de todos na preservação dessa comunidade e dos valores e vantagens que ela aporta, razão porque se organizou.

Na praça pública decide-se o equilíbrio entre o público e o privado no estrito respeito do privado ou da intimidade, que é onde habita a vida. A sociedade é já um reflexo não uma essência. A sociedade, em rigor começa para lá da fronteira da vida familiar onde os laços de sangue fazem da família uma extensão do indivíduo mais do que um acordo de interesses para a vida em comum.

Fisicamente a praça é um espaço de descontinuidade, aberto, livre, e por isso é um emblema da liberdade. O espaço público converte-se e concretiza-se em escolas, teatros, hospitais, tribunais, parlamentos, entre outros, mas sempre como locais de encontro, de discussão, decisão e de representação do interesse comum. Por isso se pode dizer, simplificando, que todos esses edifícios têm a sua origem na praça – o espaço público por definição –, o espaço aparentemente vazio do qual surgem todos os outros.

O Direito e o Mundo
Nesta relação da arquitectura com a vida surge sempre o direito. Arquitectura e direito vivem irmanados por muitas razões mas, a principal é esta: defender a liberdade dos indivíduos através da preservação das formas físicas, mentais e legais da vida individual, familiar e comunitária. Neste sentido, o direito é a política como a arquitectura é a política.

A casa é o mundo, o mundo da intimidade. A cidade é o mundo, o mundo enquanto comunidade. Cada casa e cada cidade são à imagem e semelhança da ideia de mundo, significando mundo, o que se opõe a caos, sendo mundo a forma de organização que exprime a mais alta compreensão da vida e do seu valor. Sendo o mundo à imagem e semelhança do que se conceber como Paraíso.

Percorrendo o mundo, percorremos a história, a nossa memória viva e percebemos que o modo como cada um realizou essa compreensão da vida e do seu valor é a história da arquitectura e do urbanismo. E até percebemos que a mesma arquitectura e o mesmo urbanismo garante uma permanência e uma intemporalidade que acomoda sucessivas gerações e as espanta renovadamente. Um constante regresso ao histórico só demonstra como a arquitectura e o urbanismo realizados numa relação harmoniosa com a alma humana têm um equilíbrio que muitas tentativas de industrialização da habitação não conseguem realizar. E nem se trata de espaço mas apenas da sua organização: conteúdo e distribuição.

Arquitectura enquanto Arte
Enquanto arte, a arquitectura, não é apenas um discurso normativo, apenas técnico, nem apenas formal. É, sobretudo simbólico, na perspectiva que temos vindo a desenvolver. Mas sendo também um discurso normativo, técnico e formal, a arquitectura concretiza-se, como todas as artes, em obras que falam por si, e através de uma gramática que é disciplinar, isto é, uma gramática própria organizando um discurso próprio e discutindo-se dentro dessa gramática e dessa retórica próprias. A autonomia disciplinar da arquitectura deveria pô-la a salvo de outras linguagens cuja comparação diminui a sua natureza. Seja as do primado da construção, patente nas excitações materialistas que procuram a verdade no mecanicismo, seja as do primado da sociologia, essa falsa ciência, patente nas ideologias da massificação do homem pela negação do indivíduo que marcaram o século XX, seja, finalmente, o primado do grafismo, expressão niilista ou uma comunicação de negação da forma.

Enquanto representação da Ideia de Paraíso, a arquitectura é uma exigente procura da superação do caos que é a ausência dessa Ideia. A obra surge, assim, do esforço da consciência de adunação da forma à Ideia. A arquitectura é a firmeza (firmitas), a comodidade (utilitas) e a beleza (venustas), mas só sendo estes três atributos é arquitectura. Estes atributos da arquitectura são os atributos do Paraíso: perdura pela sua solidez e firmeza, tem a forma conveniente ao equilíbrio relacional que é a comodidade e tem uma beleza emocional e inteligente, evidente e espiritual.

Não se trata a teoria da arquitectura de discursos reducionistas sobre a valorização deste ou daquele aspecto da arquitectura ou de que dela se possa dizer. A arquitectura não é a fachada, o percurso, a vista, a cor, a acústica, a referência, a surpresa, a bizarria, o grafismo, a sociologia, a estatística, a fotografia, a personalidade egocêntrica do artista, a legitimação do status quo ou consenso, nem é escultura, nem cinema, nem cenário, nem nada que a fizesse não ser tudo o que é para ser outra coisa qualquer.