Num primeiro momento, pensamos visitar um mundo que já antes
nos tinha sido apresentado, mas à medida que avançamos e fixamos a nova série
de pinturas e desenhos de Inez Teixeira mais nos deixamos envolver em vários
séculos de pintura e de literatura. Distingue-se da banal pintura contemporânea
que pretende ser apenas contemporânea e para isso recorre às estratégias de
representação e aos temas que fazem a actualidade dos media. Aqui é diferente, a sensibilidade informada pela longa e
detida reflexão de temas universais, cruzada com a contemplação da arte que já
superou a provação do tempo, desde as formas pictóricas e esculturais às
literárias, ou seja, as formas poéticas e não apenas estéticas, essa
sensibilidade culta introduz um grau de dificuldade interpretativo que não
inviabiliza a estesia mas a ela não se reduz.
Há na arte contemporânea uma espécie de truque que leva a
incluir num mesmo saco, numa mesma intencionalidade, toda e qualquer
manifestação que se autoproclame artística. A presunção democrática garante
depois o direito ao espaço público. A mesma presunção democrática igualiza
depois as obras e os artistas não deixando descolar diferenciações
desigualitarizantes. A natureza do espaço público contemporâneo é essa mesma
pseudo-igualdade e essa pseudo-licença à participação fazendo do número e da
quantidade símbolo e categoria, valorizadores das intenções e construtores de
uma verdade aclamada por unanimismos e consensos. Porém, a natureza da arte autêntica é
desigualizar, singularizar e diferenciar a criação individual.
Feito este aviso sobre uma suspeita antiga sobre o baixo valor
e até o pouco interesse intelectual da arte contemporânea e dos seus epígonos,
regressamos ao novo conjunto de obras de IT que distinguimos do discurso
temporal da contemporaneidade sem lhe atribuirmos um anacronismo nem uma necessária
expressão do seu contrário. Em Coração Aventuroso, título retirado à obra
homónima de Ernst Junger, Inez Teixeira aventura-se numa trama de abstracções quase
figurativas, permanentemente sugestivas e incompletas, suscitando um
“trabalho” incessante de reconstrução de aparências numa procura de lucidez,
identidade, reconhecimento e, finalmente, conclusão do que na pintura ficou em
aberto. Este trabalho a meias com o espectador, observador atento e
interactuante, abre um campo de memórias e de graus de realidade, que acabam
por regressar a um sempre mesmo
tropo: o regresso ao antes do princípio, o regresso ao
processo da criação: a libertação de um caos magmático, elástico, ainda
hesitante e moldável, mas já estruturado, uma espécie de pré-nascimento das
formas que cingem, delimitam e definem os corpos, realidade indivisível e sagrada, antes do golpe perpetrado pela filosofia (e a ciência) moderna.
Esta visão pré-criacionista, esta ebulição do elemento
natural na luta pela formação, pelo direito ao corpo, pelo direito à alma,
representa um apelo, ou pelo menos exibe um sinal de alerta para a necessidade
de rever tudo e recomeçar, como numa aventura vivida à procura do amor – com
carne e sangue, alegria e sofrimento.
Há uma noite (negro) de onde as formas parecem surgir
iluminadas e retorcidas, atraídas por uma luz que as impulsiona para se
formarem, para nascerem – um movimento que as perpassa e lhes parece dar um
destino. Aquilo que parece ser uma revolução da natureza assume-se, assim,
antes, como uma dramaturgia espiritual, uma inquietação da alma e uma expressão
da luta pela presença, pelo aparecimento, pela vida. Fluindo em curvas e
contracurvas, destacando ou esbatendo formas em fundos que ora são negros ora
parecem ser brancos, desenhando estas linhas que são em si mesmas
transfigurações permanentes sem cair no pecado ou na antecipação da linha
recta, a pintura pode ser o que todos quiserem sem que deixe de ser o que é.
Muitos se hão-de entreter a olhar e a tentar reconhecer as
formas que conhecem. É um processo comum aos homens por ser um acto espiritual:
traçar sobre o aparente caos uma linha que organize em formas cognoscíveis e
inteligíveis uma semelhança sobre a qual se possa dizer o que é. Quantos não o
fizemos a olhar uma parede com salitre ou as nuvens no céu? Mas também
reconhecerão citações , creio que involuntárias, de Goya, William Blake,
Yourcenar, obviamente Ernst Junger, entre outros.