sábado, 28 de novembro de 2009

Registos de Cinema III: Tetro, de Francis Ford Coppola, 2009



Segredos de uma família onde se escondem os dramas que são as razões profundas de comportamentos misteriosos e inexplicáveis. Tetro tem a chave do drama mas o pudor e a revolta levam-no a afastar-se de todos para viver uma existência anónima num bairro pobre de Buenos Aires, cidade onde estão as suas raízes, mas onde as memórias se podem enterrar.

Não é a vida que se vê, a vida pública, uma mortalha dourada onde se esconde o drama de cada um? No seio da intimidade jogam-se dados codificados. Os pecados inconfessáveis codificam-se. O seu relato codifica-se. Falar em código liberta, mas é falar apenas para quem pode perceber.

O que há de complexo nas famílias é sempre os jogos de poder, um poder feito de uma miscelânea de sentimentos e de actos manipuladores, alguns brutais e com mais consequências do que se imagina. Dentro das famílias tudo tem uma força que nas sociedades não existe. A força de um destino, de uma natureza, de uma consanguinidade (pais e irmãos) ou de uma comunhão de frutos (casais). A família implica um vínculo que não se desfaz nunca, por isso, obriga à mentira para que seja suportável, ou ao abandono e ao esquecimento. É a opção de Tetro, incapaz de lidar com o destino imposto por um pai prepotente, castigador e vingativo.

Tetro não é um génio, como o pai, e, por isso, não o enfrenta. Adquire um estatuto de génio potencial por ter uma história para contar, a sua e a da sua família, mas tudo o que deseja é libertar-se dela. É um puro e um ingénuo, ferido e enlouquecido, que tarda em revoltar-se, porque tarda em revelar o seu drama.

Tetro, vê na origem do conflito familiar, a rivalidade, e é sobre ela que escreve, em espelho, a sua história. Nas famílias a rivalidade é mais dramática porque há consanguinidade, porque há uma origem comum a partir da qual cada um vai evoluindo até ao confronto de personalidades e em que a justiça não é medida com pesos diferentes, mas com o mesmo peso. O drama de cada um fica mais exposto, mais evidente. As oportunidades naturais são as mesmas, mas um vencem e outros não. E esse insucesso é, muitas vezes, acentuado pelos vencedores ao tiranizarem os vencidos, ao subjugá-los cruelmente, como fez o pai em relação ao tio. O pai, um maestro aclamado mundialmente, pede ao tio (seu irmão) que mude de apelido. A vaidade a querer dominar sozinha o Olimpo.

Tudo nas famílias tem proporções desmedidas e adquire significados que só os próprios sentem, quase irracionalmente. A mãe de Tetro, cantora de ópera, morre num desastre de automóvel motivado por uma distracção de Tetro. O pai chega ao local e vê a mãe morta. Olha para Tetro como quem nunca lhe há-de perdoar. Mais tarde vinga-se, ao mostrar-lhe que lhe pode tirar o que ele ama. A traição é servida como exercício de poder absoluto. Ao roubar-lhe a namorada o pai diminui-o, torna-o um ser inferior perante ele e perante o mundo. Porque o faz? Porque pode diz-se no filme. Seria isto uma definição do poder. Mas é também uma vingança, porque afinal, Tetro, também o perturbava, pois tinha interferido com o seu mundo o qual supunha ser um reflexo de si e totalmente manipulável pela sua vontade soberana.

Da vingança de Tetro, só Tetro sabe. Por isso, a sua história, a sua obra, não era para publicar. A sua obra estava viva. Não tinha um fim para lhe dar.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Registos de Cinema II: Séraphine, de Martin Provost, 2008



Da mesma forma que uma personagem é um encontro de um ser com um destino de que não pode desviar-se, seres reais, ou deveria dizer fictícios?, caminham toda a sua vida por uma via estreita da qual, mesmo podendo, não se desviam. Para fugir ao mundo, por infantilidade, por loucura, por soberba, por “visionarismo”, não importa, por alguma razão se concentram numa parte de si e da sua imaginação e se de dedicam com fervor religioso a uma identidade que esculpem para a imortalidade.

Séraphine de Louis (dita de Senlis, 1864-1942) foi um ser que se tornou uma personagem pelo voto devocional ao chamamento de uma voz, de um anjo da guarda. Todo o seu trabalho como pintora foi uma espécie de caminho para um fim anunciado que a conduziu à loucura.. Vivia numa alienação do mundo quotidiano, ainda que nele trabalhasse com sentido prático (ter dinheiro para as suas telas e pincéis). Todo o seu tempo era dedicado à pintura que uns chamavam “naive” e outros primitiva.

O aparecimento do coleccionador alemão Wilhelm Uhde foi uma luz que a iluminou, como que a confirmação do que ela sempre esperara, ou acalentara. Ele reconheceu-a, ele apoiou-a, enalteceu-a e deu-lhe uma vida como pintora. Ela tinha finalmente descoberto o seu amor. Na sua loucura gastou todo o seu dinheiro num vestido de noiva e numa mansão presumindo que se ia casar com Uhde.

A força de ser uma personagem conduziu-a à mesma tragédia de qualquer personagem: o choque com o real foi irreparável. Séraphine saiu do benefício da dúvida que todos lhe davam e, vestida de improvável noiva, passeou de madrugada pelas ruas da vila anunciando que chegara o dia. Foi internada. A sua pintura sobreviveu. Naive.

E ela, que delirou pelos campos de flores, amou as árvores e se banhou em conúbio com o rio, encontrou a paz no vento que soprava nos prados e nas colinas onde se sentava com os olhos fechados e com um “petit sourrire”, vingado, de quem encontra comprazimento naquela suave e simples sensação. Os elementos foram os seus amantes.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Seis personagens à procura de autor



O Pai, uma das seis personagens que irrompe num ensaio de teatro à procura de um autor que lhes permita viver até ao fim a tragédia que os une, pergunta a um estupefacto encenador se ele se julga um ser mais real do que qualquer personagem.

O encenador, um jovem auto-confiante que apenas vislumbrava, ao longe, o mistério do teatro, olha incrédulo, mas temeroso, para a personagem que se lhe dirige e responde-lhe, com indignação, que —Obviamente que sim!

A personagem, então, explica-lhe por que é que ele está enganado: um homem vive a sua vida de tantas formas que acaba por ser em momentos ou situações diferentes mais do que uma personagem, acabando por não ser, verdadeiramente, nenhuma delas. Tudo nos homens em geral acaba por isso por ser fictício e não autenticamente real. Já as personagens só são, e nunca deixam de ser ,aquilo que são: a sua realidade não é fictícia. As personagens são reais, isto é, têm a si agarrado o seu destino.

Com esta posição, Pirandello, inverte os papéis comummente atribuídos à vida e ao teatro. A vida torna-se numa ficção onde os homens se iludem e o teatro devem o palco da realidade onde ninguém se esconde e onde tudo tem de acontecer, por causa da verdade. Ainda que a verdade seja uma tragédia para as personagens, como anuncia o Pai quando roga ao jovem encenador que os deixe viver a tragédia que trazem no seu seio.

As personagens adquirem realidade a partir do momento em que nascem no espírito ou pelo espírito de quem, imaginando-as, lhes deu uma existência potencial. Só que no momento em que nascem, adquirem uma existência trágica, porque nessa personagem nascitura está inscrita toda a fatalidade de um destino que determina todo o seu ser. A personagem, sendo real de algum modo não pode aspirar à liberdade: é-lhe vedada toda a errância. Por outro lado, interrogamo-nos, alguém é livre fora da razão que lhe deu origem?

O que as personagens cumprem é o carácter necessário implícito nos conflitos. Esses conflitos não estão na natureza mas na vida espiritual, pois é aí que todas as questões humanas se colocam. O que tece o destino das personagens é a sua fidelidade lógica àquilo que representam, ou seja, a ideia. O lugar que se atribuir à ideia dará a dimensão da personagem.

O teatro é real e não fictício na medida em que soleniza e mostra os actos humanos de libertação, sendo o espelho de uma realidade que no dia a dia se esconde. O teatro liberta, por não ser espelho do mundo sensível, mas do mundo inteligível.

A liberdade dos homens não é a ilusão da anarquia nem o equilíbrio das liberdades individuais ponderadas. Libertar-se é cada um descobrir e reconhecer a sua singularidade. Como as personagens, que afinal, talvez não sejam prisioneiras de uma ideia, mas a expressão da própria ideia.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Registos de Cinema I: Inglourious Basterds, de Quentin Tarantino, 2009



Que dizer do mais recente “Tarantino”? Em primeiro lugar, a realização (e a montagem, e a música): planos e sequências que nos prendem a atenção pelo demorado crescendo do suspense dado pelo retardamento de conflitos eminentes, previsíveis mas sempre incertos. A chegada, a aproximação e o diálogo na quinta onde estava escondida a família judia na cave é feita de um crescendo lento, sempre tenso e em que o desenlace, sendo previsível, é retardado até quase poder ser abandonado. Essa demora narrativa é feita com deleite, intensidade e crueldade, tudo formas de apelo a uma concentração e a uma contenção física e psíquica do espectador que revela o lado epicurista da realização, manipulando os sentidos, dando-lhe imagens e sons que o captam e o extasiam.

Depois o enredo: quadros aparentemente distantes e não interligados onde se vão apresentando personagens as quais se vão revelando e caracterizando em ordem a um final que se começa a antever, um grande final para onde todos confluem, num espectáculo festivo não obstante a carnificina pirotécnica que a música torna banal relaxante e até cómica.

Apesar do tema, o filme não procura culpados, nem inocentes, nem bons nem maus. Centra-se no destino objectivo de cada personagem (mais personagens do que estereótipos) cujo empenho denodado os leva a cumprir a sua missão de acordo com a sua personalidade, o seu carácter e a sua posição.

Também uma caracterização por povos fica subjacente: os americanos —primários e soberbos—, os ingleses —corajosos e desastrados—, os franceses —indecisos entre a heroicidade e a cobardia, os alemães —sobredotados e cruéis (como se duas personalidades antagónicas os habitasse e transfigurasse a cada momento)— e, finalmente, os judeus —sobreviventes na adversidade pela sua obstinação.

No que tem sido mais aclamado, sobretudo depois de Death Proof, Quentin Tarantino “revisita” os chamados filmes de série B americanos que entretinham um público menos exigente que procurava “sensações fortes”, quer dizer, choques emocionais que activassem instintos básicos, que depois, banalizavam pelo recurso ao humor. Pelo humor que é dado, muitas vezes, pelos exageros sanguinários contrastados com uma música aparentemente desligada ou indiferente às imagens, relativizando-as, num processo catártico dos instintos, ditos, primários dos homens.

Há nisto, qualquer coisa de profundamente actual ou contemporâneo: o que a cultura rejeita, se for “citado” pela cultura, recebe uma validação e uma legitimação intelectual. Ou seja, um filme de série B é lixo comercial, mas se for uma citação de Q. Tarantino é bom e interessante.

Claro que a citação tem um sentido crítico que o citado, o original, não vislumbra. Porém, a essência do divertimento é a mesma: a explosão de sensações sem mediação crítica que subjaz em cada personagem.

Em todo o caso, estamos perante a demonstração que os mesmos temas e as mesmas formas se distinguem nas obras pelo sentido simbólico que conseguem atingir.

Conta-se que Fernando Pessoa escreveu o poema “O Menino de sua Mãe” para demonstrar a dois companheiros de tertúlia que a imagem de um poster de mau gosto representando um jovem guerreiro morto, menos útil que a sua cigarreira breve, pode ser um bom poema se tratado com arte e sabedoria.