sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Registo de Cinema IX, Carnage de Roman Polanski, 2011



O que é o cinema de autor? Autoria ou assumpção da autoria? O texto é de Yasmina Reza, a realização de Polanski. Quem é o autor do filme? Quem é autor no cinema? O que é a autoria em cinema?

Procuramos nas imagens que se sucedem o lugar da nossa atenção, terão sido as palavras ditas pelos actores, a sua presença no plateau, terá sido o movimento da câmara de filmar, ou a música, será tudo isso, ou será a surpresa da montagem, ou será o seu enlevo?  O que será? Neste Polanski, como noutros também cingidos a espaços claustrofóbicos, a arte estará na direcção de actores, na adaptação do texto, no cenário e na marca do autor que consegue manter uma inquietante pressão no espectador durante 79 minutos e deixar um travo amargo no fim, sempre sem solução, sempre sem esperança, sempre fatal.

— Sê criança, permanece criança, o tempo e as idades vão-te corromper, a cultura vai-te tornar falso e vingativo, a ganância vai-te tornar cínico e indiferente, a ambição pretensiosa vai-te tornar arrogante e dissimulado e a mediocridade vai-te tornar medroso e egoísta! – parece sussurrar  R. Polanski, ou as suas personagens, através das palavras escritas por Y. Reza. Mas é R. Polanski. Percebe-se que é R. Polanski. Porque trata do mal, misteriosamente. Pelo menos é ele que o apresenta assim, conforme dele nos apercebemos no seu filme.

Como um pintor que pusesse intermináveis camadas de velaturas sobre um quadro acabado, em O Deus da Carnificina de Yasmina Reza ou Carnage de Roman Polanski, a vida em sociedade no mundo ocidental, a chamada civilização, é possibilitada e construída nessas velaturas,  culturais, que esbatem, escondem e condicionam os actos espontâneos, e brutais quando reprimidos, do homem “acabado”, do homem tal qual é sem artifícios nem imposições morais.

Zach, numa atitude de irreflectida reacção a uma provocação, bate com um pau na cara de Ethan, arrancando-lhe um incisivo e pondo outro em risco. Zach e Ethan são apenas dois pré-adolescentes a brincar num parque depois das aulas e que se desentenderam.

As mazelas da agressão dão origem a um encontro cordial entre os pais de ambos, no qual se pretendia apenas evitar contas de advogados e maçadas maiores, resolvendo com boa vontade e compreensão o sucedido. Porém, apesar dessa aparente boa vontade, desde início se percebe que tudo é feito com enorme esforço pessoal, como se um imperativo moral se sobrepusesse ao real valor que davam ao caso. E entre a boa educação de quem quer resolver tudo civilizadamente e a necessidade de vingar, acusar e compensar-se da situação, a relação dos dois casais entre si vai-se lentamente degradando ao ponto de não ser mais importante o que aconteceu entre os dois miúdos, mas e só, uma luta pela sobrevivência dos mundos, que cada uma das quatro personagens criou para si própria como sendo o melhor dos mundos, o mundo do seu conforto e do seu equilíbrio sem o qual tudo se precipita para uma outra natureza oculta ou escondida que aparece, vulcânica, revelando seres impiedosos, brutais, cínicos e cruéis. Este dissolver-se de toda a suposta civilização em que cada um se compromete a não interferir com o mundo dos outros para que ninguém interfira com o seu, este modelo de “civilização”, se questionado, minimamente, conduz as personagens a um conflito insanável.

Sem as velaturas que tornam a sociedade possível, os dois miúdos, sem conversas, nem interrogatórios, continuaram a brincar no dia seguinte como se nada se tivesse passado. O acto brutal e irreflectido de Zach, conforme os pais fizeram crer que tinha sido, não foi mais que uma reacção talvez desproporcionada mas sem maldade. E Ethan nem ficou ofendido porque não terá atribuído um significcado maior que o de Zach ter respondido na sequência de uma provocação que ele, Ethan, sabia ter feito. Aliás, foram os pais de Ethan, do seu moralismo justiceiro, que obrigaram o filho a denunciar Zach. Foram os pais para defender a sua moral e o seu mundo, que criaram o verdadeiro conflito, só que, não já um conflito entre os filhos mas um conflito com o outro casal, depois entre casais e, finalmente, consigo próprios.

Naturalmente, que o conflito era latente devido ao vazio das suas vidas. Apenas precisavam de um escape para fazer sair, a toda a pressão, a sua íntima insatisfação com a vida, com o outro e com o mundo em geral: razões de queixa, recriminações, frustrações, falsidades, sensação de impotência, e concluírem, como sempre em Polanski, que afinal estamos todos sozinhos. Assim nascemos e assim morreremos.

O Deus da carnificina, ou Carnage, supõe que a natureza humana é ocultada pela cultura, e que a civilização está toda alicerçada em convenções vazias. O autor, Y. Reza ou R. Polanski, entendem como sendo uma velatura aquilo que é a marca da própria humanidade. Apresentam-no como um verniz que estala. Entendem que a natureza não pode ser vestida pois tal limitação conduz à brutalidade que manifesta o mal e que o homem porque é um ser natural, não se pode vestir de anjo. Porém, ao contrário, se é o homem que introduz valores no mundo natural é porque é essa a sua essência e o mal será então um mistério que instiga o homem mas não é a sua essência. De onde, a tese de que a civilização é a origem de todos os equívocos, porque a vida em sociedade é impossível sem que os interesses imediatos de cada um não irrompam numa luta pela sobrevivência num campo onde terá sempre de dominar o mais forte, ou o mais astuto, declarando o homem um autómato, escravo das suas conveniências e sem afirmação racional, é em si um erro de lógica. E logo porque o homem é o único ser na terra que reflecte vendo o seu reflexo, isto é, o que lhe é próprio é a reflexão, o ver-se ao espelho, e com isso ver toda a natureza e todo o mundo e a sua própria faculdade de pensar.

O mal, tema recorrente na obra de R. Polanski, é um presságio que paira sobre uma qualquer aparente harmonia e que faz de qualquer quietude um vulcão prestes a explodir. Ora esta qualidade artística de R. Polanski não precisava de ser enquadrada por uma falsa filosofia de obediência ao politicamente correcto, nem a uma falsa pretensão de hiper-realismo fatalista.

Verifica-se em todas as áreas das artes e da filosofia contemporâneas a chegada ao beco sem saída a que a modernidade nos conduziu. As obras e a sua manifestação de impotência e de esperança são disso um sinal inequívoco. O próprio pragmatismo é um pessimismo. Verifica-se uma pressão que leva os autores a não poderem senão a corroborar as verdades do nosso tempo, entre elas a impossibilidade da vida espiritual, reduzida a artefacto cultural, vazia e desprovida de racionalidade. Qualquer fim que não fosse a condução para o vazio, para a desesperança, para o insolúvel, não seria contemporaneamente reconhecido, pois, implicaria uma posição filosoficamente conceptual sobre a natureza, sobre o homem e sobre a espiritualidade, e isso só é vagamente tolerado se for uma citação interrogativa. Dizer o que alguma coisa é fora do ordenamento mental moderno e contemporâneo está fora do eixo de compreensibilidade, sendo um risco que ninguém quer correr. Pelos vistos nem os artistas correm esse risco. Pensar é perigoso.

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