quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Registos de Cinema X, Impardonnables de André Téchiné, 2011


Imperdoável, não é o mal que fazemos uns aos outros, mas sim a crueldade desse mal. A crueldade é o mal que fazemos sabendo que estamos a fazer mal. Existe, porém, uma forma de crueldade que diria passiva, mas trágica, originada pela vulnerabilidade e permissividade de um carácter indefinido e, de algum modo, intimamente indiferente.

Vingança, egoísmo ou indiferença, são três formas de crueldade. Imperdoável. A filha, Alice (Mélanie Thierry), que se vinga do pai, indiferente ao marido e à filha; o egoísmo do pai, Francis (André Dussolier), que manipula e usa os outros como objectos do seu prazer e das suas necessidades (sobretudo as artísticas); e a indiferença de Judith (Carole Bouquet), a mais imperdoável das crueldades, e a mais trágica.

Entre vingança, egoísmo e indiferença orbitam outras personagens que vêm evidenciar os comportamentos das três principais. O centro é Judith. A crueldade que faz sofrer psicologicamente. Judith a indiferente, para quem o amor é a medida da expectativa do outro, e não do envolvimento de si própria, é a crueldade superlativa, como o objecto amado que está ausente, distante e inapreensível. Está ausente e pode estar noutro lugar, é indiferente. Um corpo que se oferece sem pedir nada em troca porque lhe é indiferente. Um corpo que fica, na sua beleza perturbante, morto e apenas receptivo à intromissão, à devassa e à manipulação. Um corpo que se entrega mas não se dá.

Essa indiferença, que é? A anestesia da dor de um amor perdido, de uma decepção castradora, de uma traição mortal, de um medo, que é? Esse o mistério da indiferença, o silêncio em que se apaga e se esconde. O apagamento do ser perante os outros, o passado, a realidade. Apenas se dá como ausência, como vazio, como fantasia efémera sem finalidade nem compromisso. Como se entregar-se fosse um dever e não amor. O outro, os outros, ficam com uma ficção, uma fantasia sem realidade, perante si próprios, sós, sem reflexo, sem nada. Judith a indiferente, é uma figura escorregadia, talvez fiel por dever, mas infiel por devoção e cuja implacabilidade a torna uma deusa para idealistas e românticos e um puro objecto de prazer para manipuladores e oportunistas, como Francis.
Se Judith representa a indiferença como ausência e impassibilidade, cruel impassibilidade, Francis, representa o egoísmo, o egoísmo manipulador, que transforma tudo à sua volta num instrumento das suas necessidades, interesses e estratégias. Como todas as pessoas, talvez o próprio Francis não tenha a percepção de si mesmo tão envolvido que anda com os seus truques, as suas artimanhas e os seus esquemas. A dimensão dessa distância de si mesmo é dada pela gargalhada cruel e mortífera da filha quando ele lhe diz que quando está apaixonado não é capaz de escrever. A gargalhada despedaçante foi uma forma de dizer ao pai que ele não é capaz de amar e, por isso, não estar a escrever o seu livro terá outra razão. Qual será essa razão? Francis acaba por denunciá-la quando no final diz que depois de viver um amor, ou melhor uma paixão, está de novo em condições para se envolver com um novo romance, com a escrita de um novo livro. O seu processo criativo é, assim, a razão de ser das suas relações ditas amorosas. Forja uma relação, segundo a gargalhada cruel da filha ferida pelo seu desamor, para dela se libertar e, então, escrever. Tudo forjado?, tudo natural? ou simples coincidência? Para a filha, que o procura ferir e que o procura perturbar, é a sua própria natureza que o faz  ser assim e nada nele é sincero, autêntico, nem espontâneo. Excepto a reacção sentida e sofrida à sua gargalhada-denúncia.

As restantes personagens acompanham o tom do filme como se a natureza humana fosse toda ela useira e vezeira em crueldades, em males que fazemos uns aos outros e de que acabamos sendo as próprias vítimas, pagando-as com exclusão, isolamento e distanciamento. E a própria cadeia de maldades faz com que sendo vítimas nos tornemos carrascos.
A crueldade humana é o que é imperdoável. Mas a crueldade não é a humanidade.

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