terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Registos de Cinema, V: Moon, de Duncan Jones, 2009



Registo de uma antecipação do futuro, ou investigação sobre a situação de um clone, ou da própria clonagem? Entre a estética recuperada (deveria dizer citação?) dos filmes de ficção científica, ou deveria dizer ficção tecnológica?, —o preto e branco minimalista, estadia num lugar sem vida (sem água) apenas rochoso, inerte, o isolamento humano num meio adverso e impossível, sem condições vitais e, por isso, todo construído pela artificialidade em que o diálogo se processa com as chamadas inteligências artificiais (Gerty o computador/robot)— e a situação potencial de um ser humano que se descobre como um clone, perde-se a oportunidade de uma investigação filosófica. Ficam as sugestões.

A estética serve de porta à recepção e ao reconhecimento do filme. Além do habitual rol das citações, escreveu-se muito sobre a irrelevância (será que é?) da filiação de Duncan Jones —filho de David Bowie, ele próprio um fascinado e um contador de histórias de ficção científica bem como um adepto da transformação de realidades a partir da manipulação do corpo e da consciência, muitas vezes, construindo assim os seus alter egos— e das semelhanças com 2001– Odisseia no Espaço de Stanley Kubrik (podíamos acrescentar a série de televisão Espaço 1999). Por aí o filme encontrou uma aceitação e um lugar.

Porém, o aspecto mais interessante que se levanta e cujo aprofundamento ficou muito aquém do desejado, é o problema da identidade individual, e esse tema é introduzido por via da manipulação genética que permite a criação de clones que não só reproduzem um ser igual a outro como, também, lhe incorporam as memórias e os sentimentos do ser clonado, entretanto desaparecido. O tema prestava-se e até recuperando o David Cronenberg de eXistenZ.

Uma sucessão de clones (com três anos de tempo de vida) ia providenciando uma continuidade do trabalho de recolha de helium-3 do solo lunar para enviar como energia limpa para a Terra. O astronauta que aparece, parece mas já não é Sam Bell, o humano que foi enviado para a missão original. É já um clone que, por causa de um acidente em que parecia ter sucumbido, deu origem ao processo de substituição, acabando, depois de recuperar forças, por voltar à base e deparar-se sujo e ensanguentado, com um clone seu (imaginou ele) em perfeitas condições físicas e de aprumo. Depois de se confrontarem suspeitosamente descobriram que ambos eram clones e, assim, descobriram a trama que a empresa Lunar Industries urdira para garantir a colheita do helium-3.

Fica a clonagem como tema a explorar, o resto é um thriller lento. As semelhanças entre os clones são indistinguíveis, mas a memória também. O processo incluía esse chip. Para quê? Para afirmar que o clone não era um robot mas sim um humano? Porquê a memória do astronauta inicial? Para que sendo humano tenha tido uma vida que justificava a estadia naquela base. Mas serão as memórias dos homens um chip apenas que se incrusta? Que realidade se criou quando os clones se encontraram? O absurdo.

Ou seria, então, todo este processo da clonagem apenas o pesadelo de um moribundo carcomido pelo isolamento e pela artificialidade racional sem amor: o convívio num mundo inerte com uma inteligência artificial?

Registos de Cinema IV: Ne change rien, de Pedro Costa, 2009



Torna-se muito evidente, quando percorremos alguns séculos de pintura na Galeria dei Uffizi em Florença, a transformação do conceito de espaço em que as figuras se vão enquadrando. Porém, o que vai mudando esse conceito de espaço são as próprias figuras, ou antes, a sua origem. Com o passar dos séculos as figuras representadas vão abandonando um fundo indistinto e mono cromático para surgirem em situações encenadas, primeiro isoladas, depois envolvidas por outras figuras, e mais tarde, já dominadas pelo conjunto, isto é, deixam de ser emanações para serem personagens em intrigas divinas, cósmicas e, finalmente, humanas. Em quatro ou cinco séculos, o homem e o que ao homem interessa, passa do espaço inexistente de onde as figuras surgiam como aparições para um mundo organizado em que as posições e os poderes se confrontam num palco humanizado.

Já no século XX, uma das características da pintura, foi, com arte abstracta, o aparecimento de uma nova categoria de “aparições” que muitas vezes caíram na composição gráfica, e até abriram caminho ao design gráfico, mas em que o conceito renascentista de espaço, o espaço perspectivado que enquadra as figuras, os seus dramas e conflitos, e que de certo modo sobrepõe o mundo aos homens, é de novo abandonado e por muitos considerado como uma irrupção do irracional num stablishment a precisar de ser provocado, talvez para libertar o homem de um certo acomodamento. A representação que nega o espaço ou pelo menos o secundariza sobressai, magnificamente, no claro-escuro altamente contrastado da fotografia de Ne change rien.

A procura de um regresso à ligação entre o homem e o mundo das ideias, o conceito do corpo como aparência de uma alma sediada noutro lugar que se revela pela palavra e pela música, numa aproximação ao mais autêntico classicismo, o grego, parece ser o que de mais notável releva neste documentário de Pedro Costa de um ponto de vista estético. É certo, que não se trata da expressão final da obra de arte como entre os gregos se exprimiu na escultura, arte que se sobrepôs à pintura, então. Mas porque a opção de Pedro Costa para exprimir este sentimento do mistério da voz, através da palavra e da música, se faz através do incessante ensaio, onde toda a humanidade das “figuras” se revela no acto de dar à luz, e ao éter, os momentos dolorosos e felizes do nascimento da obra.

O cinema nunca deixa de ser registo, e até por vezes voyeurismo, mas sempre como uma luta pela memória, pelo que se não quer perder, e esse sentimento de preservação do ofício de registar, de fazer viver a memória, está presente no cinema de Pedro Costa. Na sua forma contemporânea, a arte é substituída pelo seu fazer-se, por isso, referi a possibilidade de um voyeurismo, que passa pela intromissão de um observador na intimidade do parto da obra de arte e ficar nesse registo toda a densidade criadora que obra final nem sempre exprime, ou exprime de outra forma. Todavia, essa intromissão não rompe o mistério e o enigma, nem despe nem expõe a intimidade do acto criador. Talvez porque faz ver pelo filtro da aparição dos corpos sem espaço, como se fossem iluminações, que nos fazem ver como se víssemos para dentro e logo na primeira cena do filme em que a banda com Jeanne Balibar ao centro é povoada de pontos de luz.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Fernando Pessoa e a nova poesia portuguesa



O que F. Pessoa tentou antecipar foi uma razão de ser de Portugal e do seu destino, urdidos num estudo de história comparada, ou seja, deduzir a consciência de uma identidade a partir da visão poética inaugurada por uma plêiade de poetas num determinado momento histórico, à semelhança da interpretação que fez em “A Nova Poesia Portuguesa” ao estudar as relações da poesia e da política em Inglaterra e em França, povos de superiores, que inscreveram a sua mundividência na história universal.

O homem comum vive a vida imposta pelas contingências existenciais determinadas pela política, pela cultura e pela economia. O poeta destaca-se dessa fatalidade de fundo e introduz tropos poéticos —mentais e sentimentais— que acordam no homem comum uma outra vida encoberta e reprimida pelas necessidades imediatas e dá-lhes uma nova vitalidade, que o pode tornar capaz de actos heróicos dirigidos a uma outra dimensão que a do simples viver acabrunhado.

Os poetas, cada um a seu modo, são heróis que convocam a heroicidade. Convidam à libertação e ao abraço do sacrifício. A radicalização que a poesia traz, porque é integra, isto é, mental e sentimental, assusta o status quo e, logo, é circunscrita e vigiada para que não se empolgue, nem galvanize os homens comuns adormecidos e temerosos. O perigo da poesia é a convocação do herói encoberto que jaz no íntimo de cada um e que é aquela visão, que a todos sendo revelada no simples acto de poder pensar, permanece oculta e repudiada pela inconveniência de que se reveste.

Todos os “Pessoas” apelam a uma consciência do mundo como o lugar onde cada eu está distante da sua razão de ser e que, por isso, adia o seu destino. Esse homem desencontrado percorre muitos caminhos, muitas identidades, muitos heterónimos, mas em todos eles uma unidade substancial se adivinha.

Ao contrário das filosofias da existência ou do ser, que sempre cristalizam e falecem sem seiva renovadora, na visão que F. Pessoa induz, nasce um homem futurante, despojado, que se despe das ilusões do ser até à nudez completa e, então, contemplativa da verdade. Da verdade que estiver no final do caminho para receber aqueles que a ela se entregaram sem reservas nem calculismo. Só assim, aliás, é possível não entificar aquilo que, se o fosse, logo se negaria. Aceitar esta abertura ao que não se prova nem circunscreve, é o sentido último, é a finalidade do movimento da razão criadora, é o caminho iniciático, individual, que a consciência pátria propicia. Consciência pátria como mediação do saber universal.

Os tropos poéticos progridem para teoremas filosóficos e o saber que a poesia intui adquire expressão e dimensão humana e transcendente na filosofia. O movimento poético antecede, anuncia e propicia o movimento filosófico que lhe é implícito. Em Portugal, a poesia e a filosofia inauguraram essa visão universal que se distingue pela recusa da redução da verdade ao ser. Em Portugal, isto é, nos filósofos portugueses a redução do ser à verdade inaugura uma visão que levou Álvaro Ribeiro a falar, não de um supra-Camões mas de um supra-Dante e esse supra-Dante seria a filosofia portuguesa.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Que Mensagem para Portugal?



Um dos textos seminais da portugalidade —Mensagem— de Fernando Pessoa, fala-nos de uma Pátria a cumprir-se. Num tempo em que o relativismo confunde os espíritos, o poeta da Ode Marítima, apesar de idolatrado pela publicidade que atingiu, permanece obscuro e ineficaz na solidão dos seus pensamentos, da sua imaginação e da sua sensibilidade subtil. A divulgação acaba por matar a obra e o autor.

No caso de F. Pessoa a sua heteronímia permite diversas aproximações em que logo se podem classificar os neo-aderentes quase sempre mais interessados no reflexo e na oportunidade da sua identificação com o escritor do que numa autêntica exegese sapiencial que trouxesse à humanidade alguma luz para os seus problemas, enigmas e mistérios. De facto, F. Pessoa, permite a cada um encontrar-se na história das personagens literárias, permite que cada um renasça como artista para si próprio e para os outros, por via da invenção pessoana, sobretudo, pel’O Livro do Desassossego.

Os heterónimos não são vistos por cada um como um todo que exprime uma totalidade do real, mas como um somatório de oposições e contradições que fazem do pensamento, da imaginação e da sensibilidade subtil de F. Pessoa um sincretismo relativista que se amalgama numa indecisão.

Teixeira de Pascoais escreveu em O Verbo Escuro que o Poeta era aquele que subia aos “píncaros da vida” e depois voltava ao mundo para contar o que viu aos outros homens. O que terá visto F. Pessoa? O que será nele visão do mundo e o que será nele visão profética? Estas interrogações parecem-me ser as balizas de uma interpretação da obra de Fernando Pessoa. Só assim se poderá atribuir substância à Mensagem e, só assim, ela nos fará pensar para além das métricas, das rimas e da geometria.

A actualidade da Mensagem é a actualidade de Portugal, uma pátria por cumprir, que tarda em cumprir-se. No horóscopo de Portugal, F. Pessoa determinou o ano de 1978 como o ano da sua morte. Terá ficado, Portugal, irremediavelmente por se cumprir?

Orlando Vitorino, filósofo e dramaturgo, tradutor e intérprete de Hegel lembrava com frequência uma frase do filósofo alemão: A ave de Minerva levanta voo ao anoitecer. A ave de Minerva é a sabedoria; a noite é a morte. Figura preponderante do movimento da filosofia portuguesa, Orlando Vitorino (1922-2003), atribuía ao movimento filosófico do início do século XX, o momento em que a consciência da pátria, ou a consciência de Portugal, surgia como acto reflexivo entre os portugueses através, sobretudo, da filosofia e da poesia que sempre andam juntas: Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro e José Marinho, Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoais, José Régio e Fernando Pessoa, foram figuras basilares não só de um movimento que se distribui por várias iniciativas, da Renascença Portuguesa à Presença, como pela intervenção política.

A singularidade de Portugal, a partir de uma reflexão poética e filosófica, adquire uma sabedoria que extravasa o proselitismo nacionalista ou os estrangeirismos internacionalistas. É dessa sabedoria que levanta voo ao anoitecer que fala Hegel. É o espírito a libertar-se do corpo que se corrompe e morre. Imerso, ou antes, afundado em intrigas, em vil existência no dizer de Camões, há três séculos que Portugal se apaga, se corrói por dentro, se suicida. Sentimos agora, mais do que nunca esse apagamento, essa corrupção, esse suicídio. Vemos muitos a desistir. Vemos muitos de olhos postos num estrangeiro salvador, Ninguém, ou muito poucos, pensam no que F. Pessoa, aclamado, admirado e citado, deixou como mensagem futurante. Que nos falta para cumprir Portugal? O que é cumprir-se Portugal?