terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Registos de Cinema VI, Parlez-moi de la pluie de Agnès Jaoui, 2009



Percebe-se, no cinema inteligente e sensível de AJ, a presença de um grupo de actores que se conhecem e partilham uma forma de escrever e realizar que não se formata às exigências das produtoras e dos produtores. Aparentemente feito com baixos recursos, Deixa chover, como outros antes, são filmes realizados dentro da tradição do cinema europeu que recorre a uma sensibilidade intimista, a relações entre personagens possíveis e não simplesmente ficcionadas para manipular os grandes públicos, em que a evolução das tramas é feita, sem pressas nem efeitos especiais, como se apenas se filmasse a vida e as contradições das personagens, na duração dos seus dramas e das suas aspirações.

O encontro do cinema com o público é feito como se o público pudesse ser cada uma daquelas personagens, tão familiares são os temas, os problemas, as visões e os lugares. O filme nunca resvala para uma ideologia, nem para um didactismo. O homem europeu é cheio de contradições e vive com essas contradições, aceita-as, alegra-se e sofre com elas, mas desfruta do mundo como nenhum outro.  O prazer do cinema, surge, não pela história em si, mas pela sinceridade de carne e osso das personagens que um sopro sempre presente renova, renovando as próprias personagens.  Podíamos quase não ter bem uma história para contar, como nos frescos de Otar Osseliani, em que havendo personagens elas não são reféns da história e vivem os episódios das suas vidas num encontro e num desencontro com os outros, mas sempre com uma certa fidelidade à sua diferença e singularidade.

O cinema surge, assim, como um olhar sem censura, nem ressentimento, não pretendendo dar um destino a ninguém nem que cada um não seja aquilo que é. Vive-se fora da ficção, curiosamente, apesar de se tratar de ficção. Releva a qualidade de cada ser que é chamado a revelar-se em situações, mais do que numa trama conduzida para uma finalidade. As transformações da Europa, a miscigenação de povos, levam a confrontos, ou simples encontros, que vão construindo uma Europa feita de diversidades em que se vai assumindo um património comum, valores comuns e um futuro partilhado sem clivagens. Parece que a duração do drama existe para que as pessoas se possam encontrar e em cada outro descobrirem-se um pouco mais a si mesmas. Esta capacidade de falar de si mesmo faz do europeu um ser mais maduro, mesmo que, no cruzamento dos poderes mundiais surja mais frágil ou menos musculado contra os voluntarismos dos povos que precisam de crescer e de cometer os erros próprios do seu crescimento.

Um realizador desacreditado e um pretendente a realizador seu ex-aluno, pretendendo para fazer um documentário sobre mulheres notáveis, aproveitam a presença  numa cidade francesa de província (Avignon) de uma feminista conhecida que vinha participar num congresso que era para si própria uma entrada na vida política partidária. Coincide para ela, também, com o regresso às suas origens onde irá reencontrar a irmã e o cunhado que vivem com a velha governanta de origem magrebina que, entretanto, é mãe do jovem pretendente a realizador, empregado de balcão de um pequeno hotel, que procura sair da sua condição subalterna por via da afirmação cultural e da intervenção pública. A casa de família e as recordações, a relação com a governanta e o filho, o adultério secreto com o realizador da irmã frágil casada com um marido pouco ambicioso, solicito e imaturo, são os dados da trama que revela estas personagens. Mas o que elas fazem quase com candura e inocência é o que afinal os mostra com todas as suas fragilidades e incertezas, sendo mesmo incapazes de responder a si próprios sobre as suas aparentemente fundas convicções. Vivem de dissimulações educadas com que evitam confrontos, talvez por nada ser assim tão definitivo e importante, ou por nada neles ser manifestação do mal. São frágeis, é certo, mas procuram uma razão para amar e, sobretudo, querem sentir-se amados. São imaturos, mas porque algum momento nas suas vidas os secou perante uma desilusão que não souberam ultrapassar. São incompetentes, mas porque não é de ser competente que se faz a nossa humanidade. São dóceis, gentis, pacientes e aceitam o destino com uma certa alegria. E fica-se com a sensação que, apesar de tudo, a vida os há-de compensar. A feminista acaba por sair do seu autoritarismo para se reconhecer no amor do companheiro, a mulher adúltera acaba por preferir regressar ao amor do marido, o jovem magrebino acaba por não trocar a mulher pela colega que o seduz e faz as pazes entre a sua condição social e racial com a feminista que o tratava com disfarçado paternalismo sobranceiro, o realizador desacreditado parte atrás do filho e parece reencontrar uma certa alegria junto da mãe do amigo do filho e todos ficaram mais felizes depois daquelas férias, interregno das suas vidas, em que contracenaram junto das suas raízes.