sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Registos de exposições, Inez Teixeira, Coração Aventuroso, Fundação EDP, Museu da Electricidade, 2013



Num primeiro momento, pensamos visitar um mundo que já antes nos tinha sido apresentado, mas à medida que avançamos e fixamos a nova série de pinturas e desenhos de Inez Teixeira mais nos deixamos envolver em vários séculos de pintura e de literatura. Distingue-se da banal pintura contemporânea que pretende ser apenas contemporânea e para isso recorre às estratégias de representação e aos temas que fazem a actualidade dos media. Aqui é diferente, a sensibilidade informada pela longa e detida reflexão de temas universais, cruzada com a contemplação da arte que já superou a provação do tempo, desde as formas pictóricas e esculturais às literárias, ou seja, as formas poéticas e não apenas estéticas, essa sensibilidade culta introduz um grau de dificuldade interpretativo que não inviabiliza a estesia mas a ela não se reduz.

Há na arte contemporânea uma espécie de truque que leva a incluir num mesmo saco, numa mesma intencionalidade, toda e qualquer manifestação que se autoproclame artística. A presunção democrática garante depois o direito ao espaço público. A mesma presunção democrática igualiza depois as obras e os artistas não deixando descolar diferenciações desigualitarizantes. A natureza do espaço público contemporâneo é essa mesma pseudo-igualdade e essa pseudo-licença à participação fazendo do número e da quantidade símbolo e categoria, valorizadores das intenções e construtores de uma verdade aclamada por unanimismos e consensos. Porém, a natureza da arte autêntica é desigualizar, singularizar e diferenciar a criação individual.

Feito este aviso sobre uma suspeita antiga sobre o baixo valor e até o pouco interesse intelectual da arte contemporânea e dos seus epígonos, regressamos ao novo conjunto de obras de IT que distinguimos do discurso temporal da contemporaneidade sem lhe atribuirmos um anacronismo nem uma necessária expressão do seu contrário. Em Coração Aventuroso, título retirado à obra homónima de Ernst Junger, Inez Teixeira aventura-se numa trama de abstracções quase figurativas, permanentemente sugestivas e incompletas, suscitando um “trabalho” incessante de reconstrução de aparências numa procura de lucidez, identidade, reconhecimento e, finalmente, conclusão do que na pintura ficou em aberto. Este trabalho a meias com o espectador, observador atento e interactuante, abre um campo de memórias e de graus de realidade, que acabam por regressar a um sempre mesmo
tropo: o regresso ao antes do princípio, o regresso ao processo da criação: a libertação de um caos magmático, elástico, ainda hesitante e moldável, mas já estruturado, uma espécie de pré-nascimento das formas que cingem, delimitam e definem os corpos, realidade indivisível e sagrada, antes do golpe perpetrado pela filosofia (e a ciência) moderna.

Esta visão pré-criacionista, esta ebulição do elemento natural na luta pela formação, pelo direito ao corpo, pelo direito à alma, representa um apelo, ou pelo menos exibe um sinal de alerta para a necessidade de rever tudo e recomeçar, como numa aventura vivida à procura do amor – com carne e sangue, alegria e sofrimento.

Há uma noite (negro) de onde as formas parecem surgir iluminadas e retorcidas, atraídas por uma luz que as impulsiona para se formarem, para nascerem – um movimento que as perpassa e lhes parece dar um destino. Aquilo que parece ser uma revolução da natureza assume-se, assim, antes, como uma dramaturgia espiritual, uma inquietação da alma e uma expressão da luta pela presença, pelo aparecimento, pela vida. Fluindo em curvas e contracurvas, destacando ou esbatendo formas em fundos que ora são negros ora parecem ser brancos, desenhando estas linhas que são em si mesmas transfigurações permanentes sem cair no pecado ou na antecipação da linha recta, a pintura pode ser o que todos quiserem sem que deixe de ser o que é.

Muitos se hão-de entreter a olhar e a tentar reconhecer as formas que conhecem. É um processo comum aos homens por ser um acto espiritual: traçar sobre o aparente caos uma linha que organize em formas cognoscíveis e inteligíveis uma semelhança sobre a qual se possa dizer o que é. Quantos não o fizemos a olhar uma parede com salitre ou as nuvens no céu? Mas também reconhecerão citações , creio que involuntárias, de Goya, William Blake, Yourcenar, obviamente Ernst Junger, entre outros.

Trata-se de uma arte que faz pensar, coisa arredada de qualquer expressão artística dita contemporânea cujo único objectivo é o reconhecimento epidérmico pela semelhança a qualquer coisa da qual se tem também um conhecimento apenas epidérmico. Este fazer pensar e cumulativamente sentir é coisa, diria, para iniciados, mas a autora não terá essa pretensão, embora a subtileza da sua sensibilidade tal induza e obrigue.

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