quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Registos de Cinema I: Inglourious Basterds, de Quentin Tarantino, 2009



Que dizer do mais recente “Tarantino”? Em primeiro lugar, a realização (e a montagem, e a música): planos e sequências que nos prendem a atenção pelo demorado crescendo do suspense dado pelo retardamento de conflitos eminentes, previsíveis mas sempre incertos. A chegada, a aproximação e o diálogo na quinta onde estava escondida a família judia na cave é feita de um crescendo lento, sempre tenso e em que o desenlace, sendo previsível, é retardado até quase poder ser abandonado. Essa demora narrativa é feita com deleite, intensidade e crueldade, tudo formas de apelo a uma concentração e a uma contenção física e psíquica do espectador que revela o lado epicurista da realização, manipulando os sentidos, dando-lhe imagens e sons que o captam e o extasiam.

Depois o enredo: quadros aparentemente distantes e não interligados onde se vão apresentando personagens as quais se vão revelando e caracterizando em ordem a um final que se começa a antever, um grande final para onde todos confluem, num espectáculo festivo não obstante a carnificina pirotécnica que a música torna banal relaxante e até cómica.

Apesar do tema, o filme não procura culpados, nem inocentes, nem bons nem maus. Centra-se no destino objectivo de cada personagem (mais personagens do que estereótipos) cujo empenho denodado os leva a cumprir a sua missão de acordo com a sua personalidade, o seu carácter e a sua posição.

Também uma caracterização por povos fica subjacente: os americanos —primários e soberbos—, os ingleses —corajosos e desastrados—, os franceses —indecisos entre a heroicidade e a cobardia, os alemães —sobredotados e cruéis (como se duas personalidades antagónicas os habitasse e transfigurasse a cada momento)— e, finalmente, os judeus —sobreviventes na adversidade pela sua obstinação.

No que tem sido mais aclamado, sobretudo depois de Death Proof, Quentin Tarantino “revisita” os chamados filmes de série B americanos que entretinham um público menos exigente que procurava “sensações fortes”, quer dizer, choques emocionais que activassem instintos básicos, que depois, banalizavam pelo recurso ao humor. Pelo humor que é dado, muitas vezes, pelos exageros sanguinários contrastados com uma música aparentemente desligada ou indiferente às imagens, relativizando-as, num processo catártico dos instintos, ditos, primários dos homens.

Há nisto, qualquer coisa de profundamente actual ou contemporâneo: o que a cultura rejeita, se for “citado” pela cultura, recebe uma validação e uma legitimação intelectual. Ou seja, um filme de série B é lixo comercial, mas se for uma citação de Q. Tarantino é bom e interessante.

Claro que a citação tem um sentido crítico que o citado, o original, não vislumbra. Porém, a essência do divertimento é a mesma: a explosão de sensações sem mediação crítica que subjaz em cada personagem.

Em todo o caso, estamos perante a demonstração que os mesmos temas e as mesmas formas se distinguem nas obras pelo sentido simbólico que conseguem atingir.

Conta-se que Fernando Pessoa escreveu o poema “O Menino de sua Mãe” para demonstrar a dois companheiros de tertúlia que a imagem de um poster de mau gosto representando um jovem guerreiro morto, menos útil que a sua cigarreira breve, pode ser um bom poema se tratado com arte e sabedoria.

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