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terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Solidão e Genialidade



A propósito da demência de Margaret Thatcher, e tendo presente Fernando Pessoa que uma exposição actualmente na Fundação Calouste Gulbenkian trouxe à ribalta, mas considerando muitos outros.

O que é a normalidade e o que é a demência. Falar sozinho, falar com fantasmas, viver mergulhado numa vida interior e ver daí o mundo exterior, dar-lhe a partir daí um conteúdo, isso será demência? O que sempre fizeram os artistas e os filósofos?, aqueles que o tempo nunca compreendeu e, por isso, segregou ou nem sequer atendeu? A loucura, era ou não lucidez? Com quem falar quando não há interlocutor? A quem ouvir quando ninguém pode dizer o que importa dizer?

O ser excepcional tende para a solidão e para o isolamento. Tem de construir o seu lugar, tem de construir as suas pontes e tem de se construir no imaginário dos outros. É natural que fale sozinho, que conte só consigo e que tenha uma determinação férrea e sem hesitações, pois, sabe que não terá ajudas. Ao contrário dos que decidem sem responsabilidade diluídos no grupo, o líder tem de decidir sozinho, não alija responsabilidades, não se esconde, não se dissimula. Apresenta-se, afirma-se, confirma-se e sofre sozinho as consequências.

O poeta maior, como o político maior, como o artista ou o filósofo maiores, são inteiros e íntegros. São a sua arte e a sua loucura no mesmo instante e no mesmo lugar. E não mudam. Talvez a percepção que se tem deles mude, e muda, mas eles propriamente não mudam. Só sabem viver de um modo. O que numa idade é visto como fulgor, percepção, talento e singularidade, noutra idade é convertido em demência, loucura e alienação degenerativa. Mas os sinais estão lá todos em todas as idades. Muda a alegria, transforma-se a ingenuidade, enfraquece a determinação, empalidece a esperança, emerge uma nostalgia e instala-se um sentimento de perda, mas não muda a obstinação, a certeza da visão, a luminosidade.

Recolhidos ao seu mundo que agora os outros chamam de fantasia, os ex-líderes-da-sua-obstinação preferem regressar ao sossego da sua intimidade e viver rodeados dos seres vivos e mortos que independentemente de estarem vivos ou mortos estão presentes no grande salão da sua alma.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Fernando Pessoa e a nova poesia portuguesa



O que F. Pessoa tentou antecipar foi uma razão de ser de Portugal e do seu destino, urdidos num estudo de história comparada, ou seja, deduzir a consciência de uma identidade a partir da visão poética inaugurada por uma plêiade de poetas num determinado momento histórico, à semelhança da interpretação que fez em “A Nova Poesia Portuguesa” ao estudar as relações da poesia e da política em Inglaterra e em França, povos de superiores, que inscreveram a sua mundividência na história universal.

O homem comum vive a vida imposta pelas contingências existenciais determinadas pela política, pela cultura e pela economia. O poeta destaca-se dessa fatalidade de fundo e introduz tropos poéticos —mentais e sentimentais— que acordam no homem comum uma outra vida encoberta e reprimida pelas necessidades imediatas e dá-lhes uma nova vitalidade, que o pode tornar capaz de actos heróicos dirigidos a uma outra dimensão que a do simples viver acabrunhado.

Os poetas, cada um a seu modo, são heróis que convocam a heroicidade. Convidam à libertação e ao abraço do sacrifício. A radicalização que a poesia traz, porque é integra, isto é, mental e sentimental, assusta o status quo e, logo, é circunscrita e vigiada para que não se empolgue, nem galvanize os homens comuns adormecidos e temerosos. O perigo da poesia é a convocação do herói encoberto que jaz no íntimo de cada um e que é aquela visão, que a todos sendo revelada no simples acto de poder pensar, permanece oculta e repudiada pela inconveniência de que se reveste.

Todos os “Pessoas” apelam a uma consciência do mundo como o lugar onde cada eu está distante da sua razão de ser e que, por isso, adia o seu destino. Esse homem desencontrado percorre muitos caminhos, muitas identidades, muitos heterónimos, mas em todos eles uma unidade substancial se adivinha.

Ao contrário das filosofias da existência ou do ser, que sempre cristalizam e falecem sem seiva renovadora, na visão que F. Pessoa induz, nasce um homem futurante, despojado, que se despe das ilusões do ser até à nudez completa e, então, contemplativa da verdade. Da verdade que estiver no final do caminho para receber aqueles que a ela se entregaram sem reservas nem calculismo. Só assim, aliás, é possível não entificar aquilo que, se o fosse, logo se negaria. Aceitar esta abertura ao que não se prova nem circunscreve, é o sentido último, é a finalidade do movimento da razão criadora, é o caminho iniciático, individual, que a consciência pátria propicia. Consciência pátria como mediação do saber universal.

Os tropos poéticos progridem para teoremas filosóficos e o saber que a poesia intui adquire expressão e dimensão humana e transcendente na filosofia. O movimento poético antecede, anuncia e propicia o movimento filosófico que lhe é implícito. Em Portugal, a poesia e a filosofia inauguraram essa visão universal que se distingue pela recusa da redução da verdade ao ser. Em Portugal, isto é, nos filósofos portugueses a redução do ser à verdade inaugura uma visão que levou Álvaro Ribeiro a falar, não de um supra-Camões mas de um supra-Dante e esse supra-Dante seria a filosofia portuguesa.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Que Mensagem para Portugal?



Um dos textos seminais da portugalidade —Mensagem— de Fernando Pessoa, fala-nos de uma Pátria a cumprir-se. Num tempo em que o relativismo confunde os espíritos, o poeta da Ode Marítima, apesar de idolatrado pela publicidade que atingiu, permanece obscuro e ineficaz na solidão dos seus pensamentos, da sua imaginação e da sua sensibilidade subtil. A divulgação acaba por matar a obra e o autor.

No caso de F. Pessoa a sua heteronímia permite diversas aproximações em que logo se podem classificar os neo-aderentes quase sempre mais interessados no reflexo e na oportunidade da sua identificação com o escritor do que numa autêntica exegese sapiencial que trouxesse à humanidade alguma luz para os seus problemas, enigmas e mistérios. De facto, F. Pessoa, permite a cada um encontrar-se na história das personagens literárias, permite que cada um renasça como artista para si próprio e para os outros, por via da invenção pessoana, sobretudo, pel’O Livro do Desassossego.

Os heterónimos não são vistos por cada um como um todo que exprime uma totalidade do real, mas como um somatório de oposições e contradições que fazem do pensamento, da imaginação e da sensibilidade subtil de F. Pessoa um sincretismo relativista que se amalgama numa indecisão.

Teixeira de Pascoais escreveu em O Verbo Escuro que o Poeta era aquele que subia aos “píncaros da vida” e depois voltava ao mundo para contar o que viu aos outros homens. O que terá visto F. Pessoa? O que será nele visão do mundo e o que será nele visão profética? Estas interrogações parecem-me ser as balizas de uma interpretação da obra de Fernando Pessoa. Só assim se poderá atribuir substância à Mensagem e, só assim, ela nos fará pensar para além das métricas, das rimas e da geometria.

A actualidade da Mensagem é a actualidade de Portugal, uma pátria por cumprir, que tarda em cumprir-se. No horóscopo de Portugal, F. Pessoa determinou o ano de 1978 como o ano da sua morte. Terá ficado, Portugal, irremediavelmente por se cumprir?

Orlando Vitorino, filósofo e dramaturgo, tradutor e intérprete de Hegel lembrava com frequência uma frase do filósofo alemão: A ave de Minerva levanta voo ao anoitecer. A ave de Minerva é a sabedoria; a noite é a morte. Figura preponderante do movimento da filosofia portuguesa, Orlando Vitorino (1922-2003), atribuía ao movimento filosófico do início do século XX, o momento em que a consciência da pátria, ou a consciência de Portugal, surgia como acto reflexivo entre os portugueses através, sobretudo, da filosofia e da poesia que sempre andam juntas: Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro e José Marinho, Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoais, José Régio e Fernando Pessoa, foram figuras basilares não só de um movimento que se distribui por várias iniciativas, da Renascença Portuguesa à Presença, como pela intervenção política.

A singularidade de Portugal, a partir de uma reflexão poética e filosófica, adquire uma sabedoria que extravasa o proselitismo nacionalista ou os estrangeirismos internacionalistas. É dessa sabedoria que levanta voo ao anoitecer que fala Hegel. É o espírito a libertar-se do corpo que se corrompe e morre. Imerso, ou antes, afundado em intrigas, em vil existência no dizer de Camões, há três séculos que Portugal se apaga, se corrói por dentro, se suicida. Sentimos agora, mais do que nunca esse apagamento, essa corrupção, esse suicídio. Vemos muitos a desistir. Vemos muitos de olhos postos num estrangeiro salvador, Ninguém, ou muito poucos, pensam no que F. Pessoa, aclamado, admirado e citado, deixou como mensagem futurante. Que nos falta para cumprir Portugal? O que é cumprir-se Portugal?

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Registos de Cinema I: Inglourious Basterds, de Quentin Tarantino, 2009



Que dizer do mais recente “Tarantino”? Em primeiro lugar, a realização (e a montagem, e a música): planos e sequências que nos prendem a atenção pelo demorado crescendo do suspense dado pelo retardamento de conflitos eminentes, previsíveis mas sempre incertos. A chegada, a aproximação e o diálogo na quinta onde estava escondida a família judia na cave é feita de um crescendo lento, sempre tenso e em que o desenlace, sendo previsível, é retardado até quase poder ser abandonado. Essa demora narrativa é feita com deleite, intensidade e crueldade, tudo formas de apelo a uma concentração e a uma contenção física e psíquica do espectador que revela o lado epicurista da realização, manipulando os sentidos, dando-lhe imagens e sons que o captam e o extasiam.

Depois o enredo: quadros aparentemente distantes e não interligados onde se vão apresentando personagens as quais se vão revelando e caracterizando em ordem a um final que se começa a antever, um grande final para onde todos confluem, num espectáculo festivo não obstante a carnificina pirotécnica que a música torna banal relaxante e até cómica.

Apesar do tema, o filme não procura culpados, nem inocentes, nem bons nem maus. Centra-se no destino objectivo de cada personagem (mais personagens do que estereótipos) cujo empenho denodado os leva a cumprir a sua missão de acordo com a sua personalidade, o seu carácter e a sua posição.

Também uma caracterização por povos fica subjacente: os americanos —primários e soberbos—, os ingleses —corajosos e desastrados—, os franceses —indecisos entre a heroicidade e a cobardia, os alemães —sobredotados e cruéis (como se duas personalidades antagónicas os habitasse e transfigurasse a cada momento)— e, finalmente, os judeus —sobreviventes na adversidade pela sua obstinação.

No que tem sido mais aclamado, sobretudo depois de Death Proof, Quentin Tarantino “revisita” os chamados filmes de série B americanos que entretinham um público menos exigente que procurava “sensações fortes”, quer dizer, choques emocionais que activassem instintos básicos, que depois, banalizavam pelo recurso ao humor. Pelo humor que é dado, muitas vezes, pelos exageros sanguinários contrastados com uma música aparentemente desligada ou indiferente às imagens, relativizando-as, num processo catártico dos instintos, ditos, primários dos homens.

Há nisto, qualquer coisa de profundamente actual ou contemporâneo: o que a cultura rejeita, se for “citado” pela cultura, recebe uma validação e uma legitimação intelectual. Ou seja, um filme de série B é lixo comercial, mas se for uma citação de Q. Tarantino é bom e interessante.

Claro que a citação tem um sentido crítico que o citado, o original, não vislumbra. Porém, a essência do divertimento é a mesma: a explosão de sensações sem mediação crítica que subjaz em cada personagem.

Em todo o caso, estamos perante a demonstração que os mesmos temas e as mesmas formas se distinguem nas obras pelo sentido simbólico que conseguem atingir.

Conta-se que Fernando Pessoa escreveu o poema “O Menino de sua Mãe” para demonstrar a dois companheiros de tertúlia que a imagem de um poster de mau gosto representando um jovem guerreiro morto, menos útil que a sua cigarreira breve, pode ser um bom poema se tratado com arte e sabedoria.