quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Registos de Cinema II: Séraphine, de Martin Provost, 2008



Da mesma forma que uma personagem é um encontro de um ser com um destino de que não pode desviar-se, seres reais, ou deveria dizer fictícios?, caminham toda a sua vida por uma via estreita da qual, mesmo podendo, não se desviam. Para fugir ao mundo, por infantilidade, por loucura, por soberba, por “visionarismo”, não importa, por alguma razão se concentram numa parte de si e da sua imaginação e se de dedicam com fervor religioso a uma identidade que esculpem para a imortalidade.

Séraphine de Louis (dita de Senlis, 1864-1942) foi um ser que se tornou uma personagem pelo voto devocional ao chamamento de uma voz, de um anjo da guarda. Todo o seu trabalho como pintora foi uma espécie de caminho para um fim anunciado que a conduziu à loucura.. Vivia numa alienação do mundo quotidiano, ainda que nele trabalhasse com sentido prático (ter dinheiro para as suas telas e pincéis). Todo o seu tempo era dedicado à pintura que uns chamavam “naive” e outros primitiva.

O aparecimento do coleccionador alemão Wilhelm Uhde foi uma luz que a iluminou, como que a confirmação do que ela sempre esperara, ou acalentara. Ele reconheceu-a, ele apoiou-a, enalteceu-a e deu-lhe uma vida como pintora. Ela tinha finalmente descoberto o seu amor. Na sua loucura gastou todo o seu dinheiro num vestido de noiva e numa mansão presumindo que se ia casar com Uhde.

A força de ser uma personagem conduziu-a à mesma tragédia de qualquer personagem: o choque com o real foi irreparável. Séraphine saiu do benefício da dúvida que todos lhe davam e, vestida de improvável noiva, passeou de madrugada pelas ruas da vila anunciando que chegara o dia. Foi internada. A sua pintura sobreviveu. Naive.

E ela, que delirou pelos campos de flores, amou as árvores e se banhou em conúbio com o rio, encontrou a paz no vento que soprava nos prados e nas colinas onde se sentava com os olhos fechados e com um “petit sourrire”, vingado, de quem encontra comprazimento naquela suave e simples sensação. Os elementos foram os seus amantes.

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