segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Registos de Cinema VII, Habemus Papam de Nanni Moretti, 2011


Há no cinema actual uma perda de densidade dramática, uma certa falta de resposta do homem e um aumento de opinião sem raízes profundas nalgum paradigma ou num autêntico paradoxo. Nota disso, é o mais recente filme de Nanni Moretti, Habemus Papam.

O filme trata a situação do Homem perante as certezas e incertezas entre as quais tem de conduzir a sua vida. No caso, escolhe uma situação limite de um homem concreto integrado numa instituição onde as certezas públicas absorvem as incertezas privadas, ou seja, um homem que está numa instituição estruturada por uma verdade e uma doutrina na qual cada um se integra livremente pelo reconhecimento dessa verdade e dessa doutrina, mas em que há uma diferença entre ser um homem numa instituição e ser a própria instituição, e nessa diferença se joga o que poderíamos chamar o factor humano o qual se manifesta na qualidade da decisão que toma perante os outros (as instituições) e si próprio.

As instituições são dos homens, mas enquanto grupo de homens, e, por isso, não reduzem a liberdade individual. Elas surgem das afinidades existentes entre diferentes homens, e as suas”verdades” têm mais substância enquanto reflexo de aturada reflexão e sedimentação do que as interrogativas incertezas de cada um perante si mesmo e perante o mundo que o excede e o ultrapassa. O valor das instituições está afinal na indução de uma certa ideia de liberdade. A ideia de que a liberdade não está em fazer o que se quer mas sim em fazer o que se deve (JPII). É, pelo menos, esta a forma de as justificar, quando convém lembrar que sem instituições não há civilização.

NM é especialista a relativizar e a semear a dúvida, quase como um método. NM é um incrédulo militante, mas com uma certa humana doçura o que não lhe retira o pessimismo, um pessimismo triste, compassivo, auto-compassivo, parecendo às vezes apenas uma criança que não percebe o mundo em que vive, ou que  não o aceita na medida em que não quer crescer.

A história desenrola-se entre a eleição de um novo Papa e a sua resignação. O cardeal Melville, depois de eleito apavora-se com a responsabilidade e entra num período de retiro pessoal sem que nada seja comunicado ao exterior, em que lida com a sua hesitação conversando com psicanalistas, com outros cardeais, com pessoas que se cruzam com ele, mas sobretudo, fazendo uma espécie de rememoração da sua vida acabando por concluir que Deus se teria enganado ao escolhê-lo e que não podia ser ele o Papa para aquele tempo.

 O que conduz a história são as dúvidas do Papa (Michel Picoli) e o diálogo que tem primeiro com o psiquiatra nomeado pelo Vaticano (Nanni Moretti) e, depois com a sua ex-mulher, também psicanalista (Margheritta Buy) que recebeu o novo paciente sem saber que aquele homem comum era, afinal, o Papa que na televisão e a toda a hora aparecia como se tendo recolhido em oração antes de se apresentar e dirigir aos fiéis na janela de S. Pedro.

Melville, o Papa eleito põe as suas dúvidas sobre a sua capacidade para desempenhar a missão à frente do desígnio de Deus, manifesto pela votação dos cardeais. Um dado fortaleceria a inspiração dessa escolha, o facto de ser um cardeal desconhecido que nem estava nas sondagens nem nas apostas, cujo nome nas primeiras tentativas  de eleição nem sequer foi mencionado e que, no fim, é eleito quase por unanimidade. NM não quer reduzir a escolha a uma decisão humana de estratégia política e de conveniências de grupos. Não, ele pretende que a recusa de Melville seja interior, profunda e acintosa,  porque perante a evidência da escolha ter tido uma origem divina. Isto implica um redobrado pessimismo e um corte mais radical entre o homem contemporâneo e a própria transcendência. Um pessimismo perante uma evidência revelada e manifesta.

O filme seria valorizado se a hipótese fosse, no mínimo, verosímil e não é. Todos os cardeais sentem uma enorme pressão e uma enorme responsabilidade quando entram no conclave. Mas uma vez entrados, podendo ser escolhidos e tendo tido uma vida inteira de preparação para poder recair sobre eles essa escolha, é pouco provável que uma crise tão limitadora surgisse, depois de se ter dirigido já vestido, e investido, até à varanda onde revelaria a sua identidade e daria uma primeira bênção aos fiéis que ali se tinham deslocado para o ver e aclamar.

O pessimismo  perpassa toda a história. É a visão de que as instituições humanas, ou a ciência, no caso a psicanálise,  dependem de uma vontade de embarcar numa espécie de fantasia que o nihilista desconstrói sofismando. Melville, os cardeais e o Vaticano, embarcam na religião e nas suas verdades e rituais, mas por de trás de um ar hierático e distante, estão um conjunto de rapazes que gostam é de se entreter a jogar às cartas ou a participar em torneios de voleibol nos pátios do Vaticano. Os psicanalistas sempre em choque com as suas teses terapêuticas depreciando-se mutuamente fazendo-nos crer que cada um tem uma verdade que lhe convém  e em que insiste de forma autista, mas totalmente incapazes de se superarem reduzidos a picardias adolescentes e pouco maduras. O pensamento especulativo, e que é imaginativo, surge como uma ficção que se constrói mas que na verdade não tem correspondência com o real nem com o que o Homem realmente sente e vive. Daí o pessimismo de NM.

Há, também, um vazio profundamente desesperado, quando Melville, o Papa eleito, anuncia a sua resignação para consternação geral dos outros cardeais, e se vira de costas deixando a varanda vazia, só com o vento a bater nas cortinas de veludo carmim. O homem afinal pode recusar Deus e assim abandonar os outros homens. O incapacidade de ver e compreender vence. É a sobreposição da vontade humana ao desígnio misterioso de Deus. Uma desobediência esterilizadora.

Mais um filme que nestes tempos estranhos acaba numa espécie de vazio inapelável, como acontece noutros filmes como veremos a propósito de Melancholia de Lars von Trier.

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