terça-feira, 6 de março de 2012

Registos de Cinema XIII, Shame de Steve McQueen, 2011




Shame não é bem sobre a vergonha mas sobre o vício e o sentimento de culpa. Tenta a ideia de arrependimento mas deixa no ar a reincidência. Sendo sobre o vício é também sobre a solidão a que o vício conduz. É, alias, a principal consequência do vício: a solidão, pior, o isolamento. Não tanto pela vergonha mas mais pela impossibilidade de partilha. O isolamento é a impossibilidade de partilha. Nem só os vícios isolam, as mentiras, as simulações, as falsidades também isolam, no entanto, resultam duma chantagem social e emocional que envolve terceiras partilhas e por isso isolam só em parte. A natureza do vício é o anonimato e a solidão absolutas. É essa dimensão de absoluto que leva a que muitos não suportem os seus próprios vícios e sucumbam. Enquanto que as mentiras, as simulações e as falsidades descobrindo-se ou não criam correntes diferentes de apoio e repúdio que dissolvem o centro e a responsabilidade individual. O vício, não: é cerebral, calculado, meticuloso. Por isso, é perigoso. Desenvolve uma forma de vida paralela à realidade e absolutamente insuspeita. Desenvolve na pessoa uma segunda vida. Outra pessoa. É este o tema do filme.

Há no início uma rotina maquinal. Brandon (Michael Fassbender) tem uma vida sem sobressaltos, absurda, mas aparentemente satisfatória, dividida entre sexo mercenário, sexo ocasional, pornografia e auto-satisfação. Entra em cena a irmã, Sissy (Carley Mulligan), uma suicida compulsiva, emocionalmente desequilibrada, que procura protecção, família e um refúgio que a afaste de si própria e dos seus distúrbios, mas a quem ele resiste violentamente na defesa do seu território e do seu secreto vício. Egoísmo puro. Ela apela aos laços de sangue e ele é brutal no despeito e na rejeição. Ela telefona-lhe ininterruptamente “pedindo socorro”, mas ele, obsessivamente focado na sua espiral sexual, compulsiva e incontinente recusa atendê-la e ela, sozinha, acaba por se tentar suicidar novamente. Porém, ele salva-a in extremis, e perante o espectáculo de horror descobre a culpa e, aparentemente, o arrependimento. Fica-se na dúvida. O registo voyeurista do filme, torna-o inconclusivo e sem densidade. À excepção do título que acaba por ser um juízo moral, uma vez que no filme não encontramos propriamente um sentimento de vergonha, tudo pretende ser sem interpretação, uma espécie de vejam o que aconteceu, ainda que, o que aconteceu seja um arranjo conveniente sem verdadeira construção da personagem. Quem é Brandon?, de onde vem?, como chegou ao que chegou?, como vive com isso intimamente? Sobre isto nada. Descreve-se um anónimo, como se houvesse verdade num estereótipo.

Curioso seria abordar este tema a partir de dentro, do tormento da personagem, da origem e do progresso do vício, e o seu culminar, por si mesmo, e não provocado pela acção exterior da irmã que vem apenas dar um tom moral ao tema do vício que era suposto ser abordado e escalpelizado. Seguiu-se a via mais simples dos clichés, de um sentimentalismo superficial, estereotipado e pretensiosamente elegante. A estética consome-se sem poética.

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