segunda-feira, 10 de junho de 2013

Registos de Cinema XXIV, Before Midnight de Richard Linklater , 2013




1.
O tom geral do filme e a representação parecem ensaios em que os actores, estão tão familiarizados com os seus papéis, que os representam com excesso de à vontade e com pouca densidade, por isso mesmo de não representarem os diálogos, mas os dizerem. Estes parecem ditos em contra-relógio, disparados sem os tempos próprios de reacção nos quais os actores fariam as personagens construir respostas pensadas e provocatórias que apenas são verosímeis caso haja o tempo de ouvir, o tempo de digerir e inventar e o tempo de responder. Os silêncios são ocupados pela resposta pronta e previamente definida.

Há uma informação e uma riqueza de assuntos ao longo do filme que parecem desadequados para as personagens, sobretudo de Jesse (Ethan Hawke). Julie Delpy parece ter um papel, o de Céline, mais feito à medida da sua representação, sempre a tentar ser muito natural, parecendo quase que a personagem e ela própria estão em perfeita sintonia. Denota um prejudicial overacting. Já Jesse parece ser sempre superficial, demasiado exposto para um escritor, com opiniões coladas à cultura da citação, com ideias para livros sempre muito pretensiosas como se tudo o que lhe vem à cabeça fosse interessante ou genial. Essa personalidade sem filtro não parece ser adequada a um escritor, muito menos aquela partilha com desconhecidos, amigos recentes mas desconhecidos, das ideias que vai tendo como se um autor não guardasse para si e protegesse, a surpresa da narrativa, sobretudo, entre pares, como é o caso.

2.
Entre vários temas secundários, o tema central é a relação de Céline e Jesse, num momento em que se abre um conflito enraizado nas diferenças de quem não pode, pela sua condição (Jesse tem um filho que não vive com ele e por quem desenvolve um sentimento de culpa / perda quando ele regressa a casa da mãe depois das férias com o pai), partilhar a totalidade dos seus problemas, dos seus sentimentos e da sua forma de encarar o futuro. Um sentimento não partilhado, um problema individual, ou uma expectativa que não é comum, podem ser falha que dá origem à separação porque isolam um em relação ao outro.

Existem muitas banalidades para alimentar as questões de género e o filme não as dispensa: o chorrilho das razões de queixa com os pormenores do dia-a-dia, como a tampa da retrete para cima ou para baixo, as tarefas de cada um nesse dia-a-dia, os esforços de um e que presume que o outro não repara, etc. A psicologia feminina e a psicologia masculina em vez de actuarem nas vantagens da diferenciação colidem na tentativa de se homogeneizarem e, daí, o conflito. Os conflitos não resultam de pessoas diferentes quererem objectos diferentes, mas de pessoas diferentes quererem o mesmo objectivo. A partilha de objectivos convoca a diferença e não a igualdade, a partilha de objectivos convoca a complementaridade e não a mesmidade.

A questão é, então, perceber se houve, na relação que termina, um mesmo objectivo ou se apenas houve uma disposição interior para representar numa realidade ficcionada que era a de haver algo em comum que era partilhado. Que factor desencadeou essa disposição e que factor a abortou? As banalidades do dia-a-dia são uma mentira útil em que não se é sério consigo mesmo se as invocarem como motivo de queixa relativamente ao outro.

Os papéis feminino e masculino nas relações são muitas vezes assumidos, inicialmente, de uma forma que se vai transformando e quase inverte, posteriormente, com o passar da novidade, com a instalação das rotinas e com a manifestação continuada das personalidades. Percebe-se, muitas vezes, que os papéis inicialmente assumidos não sendo forçados alimentavam-se de uma assumpção deliberada que acaba por se deixar de alimentar. Ou seja, tudo o que era inicialmente assumido e aceite, quebrado o encanto, é dito afinal como tendo sido tolerado, ou seja, perdendo-se a disponibilidade para amar, tudo passa a ser visto ao contrário. O outro que era amado tal qual era passa a ser o que impede o mesmo de ser aquilo que o outro é. Explicando: a mulher  que fazia com doçura e prazer determinadas tarefas, de súbito, passa a criticar o homem por ele não fazer também aquilo que ela faz, que afinal essas tarefas eram penosas e ela fazia-as com sacrifício pessoal e preferindo delegar (coisa que depois não seria verdade, pois apenas quer que se reconheça a importância vital e suprema das suas actividades em prol da família e dos outros), e passa a dizer que o que ela queria mesmo fazer era fazer aquilo que ele faz (apesar de depreciar e fazer equivaler à nulidade essas actividades ociosas) e irrita-a vê-lo a fazer aquilo que ele faz porque estando ele a fazer esvazia a possibilidade de estar ela a fazer. O conflito, diríamos, combate, não é racional. É emocional e tem a ver com as perdas irreparáveis que todos carregamos e não conseguimos superar. Vivêssemos em paz connosco próprios e não haveria conflitos que nos atormentassem.

O anfitrião da casa de férias, um velho escritor que aqui se pretende que simbolize a sabedoria, aconselha os seus convivas sobre a frase inscrita no frontão do Templo de Delfos "Conhece-te a ti mesmo".

3.
Na cena final procura-se um fim feliz. Considerando as características de Céline o fim feliz é consistente, ou seja, conjuga-se com a personalidade inconsequente de Céline, mas não é o corolário da conversa que manteve durante a noite com Jesse. O amor estava impossibilitado com tudo o que se disse. Jesse sai do quarto onde Celine o deixou sozinho e vai sentar-se junto de Celine tentando demovê-la da decisão de não o amar. Ela decidiu não o amar. Isso não é coisa que se decida. Ama-se ou não se ama. O resto são indecisões de diversas fontes e motivos nascidas e criadas nas insinceridades que temos para connosco próprios. Mas sobre amar, se há dúvidas, então, não se ama.

Teríamos assistido, no final do filme, ao fim de uma relação. O que se disse fez nascer dois estranhos, duas pessoas que apesar de toda a intimidade e confiança se tornam de súbito, um para o outro, estranhos. Como se dentro do outro houvesse um ser inesperado que sai de uma ignorada latência para a afirmação e esse ser é um estranho. Aí, percebe-se que o amor era afinal, apenas, a coincidência de investimentos pessoais numa ilusão que só poderia durar o tempo da vontade dessa coincidência. Essa coincidência começa com um desejo mútuo, depois torna-se numa cerimónia , depois numa hesitação desgastante alimentada por um certo incómodo moral e, por fim, dá-se a ruptura, feita de separação e rejeição como se da libertação de uma toxina se tratasse.

Podia ser uma história das imitações do amor. Imitações num tempo em que se vive só para a imagem, para a superficialidade e para o vício. O amor, ou antes, a sua imitação é mais um prêt-a-porter sem verdade nem responsabilidade. E sem respeito genuíno pelo outro. O outro não é acolhido no coração, é apenas um invasor a quem, por qualquer interesse, não se dá luta temporariamente. Por medo da solidão, por luxúria, por conveniência, por muitas razões, até razões insondáveis.

Pudesse cada um conhecer-se verdadeiramente a si próprio e talvez pudesse, então, saber o que é e não aquilo que presume ser. Pudesse cada um conhecer-se a si próprio e talvez descobrisse que os actos que presume sérios, verdadeiros e sinceros possam ser oportunistas, interesseiros e até vazios como os daqueles que despreza. No filme de Richard Linklater, como afirmamos antes, tudo acaba numa pieguice irreal. Tudo estava acabado quando a primeira dificuldade abriu não um pequeno roço mas uma fenda cósmica. Ambos transportavam essa fenda cósmica apenas não lhe davam importância para melhor enfeitarem a sua simulação do amor.

Sendo quase natural, o Amor, é quase impossível pelo menos enquanto não houver dentro do fundo de nós um mínimo sentido da heroicidade que é aquele que nos ensina a ter coragem de morrer pelo outro.

1 comentário:

  1. Pois... este não vou ver. Julgo ter percebido a mensagem e, com uma certa falta de amor ("coragem de morrer pelo outro"), nem sequer acabei o texto!

    ResponderEliminar