Há dias perguntava-me um jovem como é que se descobre um
amor para a vida, como é que se sabe? Olhei-o e disse-lhe a verdade: não se
sabe!, mas acrescentei, pode acontecer..., pode acontecer que coincidam, no tempo
e no espaço, duas pessoas que, perante a esperança que a outra lhe abriu na
alma, queiram fazer perdurar para sempre esse sentimento iluminador e não
deixem que nada, alguma vez, se interponha entre elas, nenhum
sentimento, nenhum pensamento, e nenhuma ilusão faça fraquejar esse desejo comum de resistir para sempre à dissolução, à corrupção, à insignificação.
Como fazer isso? – perguntou-me. Disse-lhe: olhar para o
outro com a mesma admiração e respeito com que se olharam da primeira vez. Manter aberta a mesma expectativa. Num
certo sentido, manter a mesma cerimónia, não como quem se engana num registo falso e desapaixonado
de relação, mas como quem espera sempre, como quem ouve, não tem pressa e
dá sempre a vez. E porque fazê-lo?, porque, se preservar esse primeiro
sentimento irrepetível, esse momento de esperança, não terá de o procurar em mais lado nenhum, porque o
relâmpago é sempre o mesmo. E o que importa é o que se faz com ele e não
repeti-lo ou macaqueá-lo até à exaustão, até já não se saber do que é que se está realmente à procura.
Vinha a conversa a propósito do filme de Michael Haneke – Amour – em que um casal Anne (Emmanuelle Riva) e Georges (Jean Louis Trintignant) vive os últimos dias das suas vidas na intimidade e
no respeito do outro, sem que alguma
mínima brecha se abra perante as dificuldades da corrupção final do corpo que nesses dias perturbam a alma e a claridade de outros tempos. É como se vive a vida do Amor numa idade avançada, e, pergunto-me: – Não é nessa idade
avançada que a expressão da sua longa preparação se revela mais exultante? Não
é aí que o Amor e a Sabedoria se entrelaçam e exprimem, se longamente preparados? Veja-se a forma e o
desenlace do processo amoroso e
conclui-se que não há forma nem lógicas sociais entre os amantes, bons sensos, nem conselhos exteriores, mas apenas a
liberdade absoluta do seu Amor.
Os diálogos que desenvolvem, são diálogos de velhos
conhecidos, mas são diálogos que mantêm a distância que permite o jogo do que
se mostra e do se esconde, que permite o silêncio, mas também o atrevimento,
que permite e expressa a opinião mas aceita a contradição, sem falsos pudores
nem falsas indignações. Conversam observando, arriscando, brincando mas, ao
mesmo tempo aceitando, apreciando, amando. Conversam como quem ainda tem coisas
a dizer sobre o outro que ainda não teriam sido ditas, como se ainda tivessem
coisas para revelar e porquê?, porque a vida interior de cada um não se apagou, nunca se apagou e mantém, ainda e sempre, uma
pulsão, um vigor, uma actividade renovada que o outro percebe e inquire, procura descobrir, interroga e partilha.
Por isso, disse ao jovem com quem falava: o segredo do
Amor?, manter o pudor e a distância, prolongar infinitamente aquele momento
inicial como o maior tesouro que se pode guardar, e desfrutar dos seus
rebentos. E se bem pensarmos, o Amor e a Morte estão mais fundidos do que a
vida nos parece fazer querer. O filme de Michael Haneke tem essa virtude.
Mostra como o Amor e a Morte andam de braço dado nas vidas que têm a dimensão
humana e não se reduzem a um coleccionar de futilidades, pequenos prazeres e
excitações juvenis.
A Morte é um momento final, seja ou não de passagem. O Amor
é o condutor de toda a procura da verdade, porque é a procura vivida e
experienciada. Sem o outro que no Amor se procura, e encontra (quando encontra), a vida é uma
espécie de ramo seco.
Amor e Morte não andam sempre ligados pelas mesmas razões.
A melhor razão é aquela em que o Amor liberta da Morte e em que, simetricamente,
a Morte é libertadora. E poderá ser assim, sem ser mórbido, lúgubre, nem
penoso...? essa a beleza do filme de Michael Haneke.
Michael Haneke não trata o Amor como essa palavra gasta, profanada, usada indevidamente para mascarar as ilusões sem perder a
dignidade, ainda que se perca. Nem como essa muleta deturpada com que se pretende
legitimar por fora, exteriormente, aquilo que exige um mergulhar na provação profunda de
vislumbrar a morte, de a entrever sem ser como um fatalismo da existência
natural, mas como um símbolo do que há-de dar sentido, significado e redenção
às nossas vidas. Michael Haneke trata o Amor como aquele que não se diz mas
também não se reduz a um sentimento indizível ou apenas não dito, trata o Amor
como aquilo que se liberta do tempo, do tempo em que a Morte impera, e perdura confiante
e sereno sem nunca se turvar. Trata-o, por isso, na velhice para nos mostrar
como Amor, Sabedoria e Morte se entrelaçam.
Bem diferente de Um
Amor de Juventude de Mia Hansen-Løve onde um forma de Amor juvenil e
permanentemente hiperbólico, inseguro e absorvente conduzia, ainda que com
indiscutível beleza, a sucessivos insucessos. Mas aí devido à falta de
omnisciência dos amantes. Mas aí era o amor juvenil que se recusava a crescer. A possibilidade da comparação dos assuntos das duas obras pode ser muito revelador.
Sem comentários:
Enviar um comentário