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segunda-feira, 17 de junho de 2013

Registos de Cinema XXV, To the Wonder de Terrence Malik , 2012




1. Neil (Ben Affleck) e Marina (Olga Kurylenko) viveram em Paris, uma paixão arrebatadora e passearam-se idilicamente no Mont-Saint-Michel, cuja abadia é denomindada: La Merveille. Mais tarde, nos EUA, para Neil, cuja profissão é detectar sinais de contaminação em terrenos rurais, a paixão entrou numa rotina sem esperança e a relação perde o sentido. Disso se apercebendo, Marina, procura Quintana (Javier Bardem), um padre católico que se interroga permanentemente sobre a sua relação com Deus. Marina decide regressar a Paris sem uma aparente razão aproveitando o facto, técnico, do seu visto estar a expirar e Neil não ter decidido casar com ela. Sozinho, Neil reencontra Jane (Rachel McAdams), de quem tinha gostado na juventude, mas também com Jane, Neil, não foi capaz de se compromoter e deixaram-se. Marina, entretanto regressa dando-se-lhes uma segunda oportunidade mas, as promessas do primeiro amor depressa se dissiparam e Neil, no momento de se comprometer com o futuro, apesar de se terem casado, hesita em ter um filho e Marina destroçada entrega-se ao primeiro homem conhecido com que se cruza e lhe deita um olhar. Esta a sinopse de To the Wonder. Dois homens em sentido oposto, um que se deixa tomar pelo vazio (Neil) e outro que luta pela vida contra o vazio (Quintana o padre). Duas mulheres (Marina e Jane) que procuram uma realização, uma concretização, um comprometimento e que são abandonadas.


2. Seria importante relacionar La Merveille (a abadia do Monte de Saint Michel na Normandia), com a abordagem do Amor e da Verdade ensaiada por Terrence Malik. Primeiro porque é explícito na escolha do título do filme, depois porque sendo um dos cenários do filme e ficando como título há-de ter um significado concreto: há na “Maravilha” um duplo sentido humano e divino que está presente nesta obra de Malik. Em teoria, explicando La Merveille poderia explicar-se o filme.

La Merveille é um lugar que ganha importância com a implementação do cristianismo na Europa como lugar de oração e estudo. Centro de peregrinação com raízes religiosas ancestrais, La Merveille, foi sendo construída como uma porta que liga a Terra e o Céu: a sua arquitectura no estilo gótico flamejante, é em si mesma a transformação de um macisso rochoso numa abadia monumental enriquecida por detalhes ornamentais de grande delicadeza.

É este carácter diria mágico que faz de La Merveille um lugar denso psicologicamente e propício a uma transmutação interior: como se cada um fosse tomado por um encantamento, que o fizesse tocar os céus. Depois dessa experiência, o mundo, é uma longa provação. Como se entre as pesquisas geológicas infernais de Neil e o enlace amoroso com Marina em La Merveille se deambulasse entre o céu e o inferno.

3. To the Wonder, que recebeu em português o título A Essência do Amor, é uma procura do Amor verdadeiro e da Verdade em si mesma. O Amor verdadeiro é o que dá o braço à Verdade, é o que, não presume resumir-se aos falíveis sentimentos humanos mas que procura dar a esses sentimentos um destino superior à sua simples dissolução. Fala-nos do Amor humano que se declina do Amor de Deus e que a ele se terá de manter fiel. Diz-se interrogando:
— Que Amor é este que nos ama, que vem de parte nenhuma, de tudo em redor, do céu, das nuvens? Tu também me amas?

O Amor de que todos participamos não nasce em nós, não nasce em cada um e depois é trocado entre todos. O Amor é uma relação de que todos participamos e que assume formas diferentes nas relações sem que deixe de ser o mesmo Amor. É sempre participação de uma realidade que nos transcende. Da nossa condição, então, não temos a plenitude da experiência amorosa e o nosso carácter, a nossa incompreensão, a nossa ignorância exprime-se no bloqueio à corrente do amor, exprime-se no egoísmo, no isolamento em que nos afirmamos mas em que, depois, ficamos sós e sem Amor.

O padre Quintana, vive a consciência desse bloqueio, acredita, dedica-se, mas algo nele o impede da experiência empática com Deus, com o Amor de Deus. Quer ver mas não vê e nas suas homilias, no seu esforço de compreensão e de comunicação, não foge às questões e enfrenta-as e diz que se por alguma razão não sentires o Amor então obedecerás, porque quando Cristo diz Amarás, não está a sugerir mas a mandar que se ame, a mandar cada um impor-se a essa necessidade de amar para lá da sua compreensão, pois só assim poderá encontrar o Amor e não, desistindo porque não sente.

O Amor verdadeiro é comprometimento, diz Quintana, e essa Verdade do cristianismo, que é todo ele comprometimento e empenho, dedicação e esperança, não poderia dizer-se outra coisa sob pena de chegar à mesma conclusão de Anne: se isto não foi Amor então não foi nada, foi apenas prazer e luxúria. Sem verdade isso é vício. É aqui que se dá o carácter transfigurador do Amor: tudo se pode sempre reduzir a nada, tudo se pode sempre reduzir ao vício, mas a consciência permite-nos viver os sentimentos com uma finalidade para além de apenas sentir, com uma finalidade que torne os sentimentos robustos e cada vez mais fortes, e isso é o comprometimento, o empenho, a dedicação, a esperança de uma realização íntima e transcendente, pessoal e universal. Um comprometimento mútuo em vez de um mútuo uso. Porque estaremos mais disponíveis para sermos usados mutuamente em vez de procurarmos ser mutuamente comprometidos?

Nas suas deambulações, porque as personagens neste filme parecem sempre deambular numa espiral interior, surge a segunda pergunta chave do filme: onde estamos quando estamos lá? Ou, o que é verdade quando estamos lá em cima? Esta interrogação liga a Verdade e o Amor, ou seja, põe a interrogação sobre o que seja a Verdade numa perspectiva não humana mas divina: se soubermos o que é a Verdade, o que será essa Verdade? Daqui apenas a podemos imaginar, sonhar, ou ouvir e não podendo saber o que é a Verdade pela nossa condição actual, podemos pela oração e pela reflexão na Verdade revelada ir desvelando e desencobrindo esse Amor que nos parece distante de nós e quase desumano, caso não fosse para nos dar a plenitude da nossa humanidade que ele existisse.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Registos de Cinema VII, Habemus Papam de Nanni Moretti, 2011


Há no cinema actual uma perda de densidade dramática, uma certa falta de resposta do homem e um aumento de opinião sem raízes profundas nalgum paradigma ou num autêntico paradoxo. Nota disso, é o mais recente filme de Nanni Moretti, Habemus Papam.

O filme trata a situação do Homem perante as certezas e incertezas entre as quais tem de conduzir a sua vida. No caso, escolhe uma situação limite de um homem concreto integrado numa instituição onde as certezas públicas absorvem as incertezas privadas, ou seja, um homem que está numa instituição estruturada por uma verdade e uma doutrina na qual cada um se integra livremente pelo reconhecimento dessa verdade e dessa doutrina, mas em que há uma diferença entre ser um homem numa instituição e ser a própria instituição, e nessa diferença se joga o que poderíamos chamar o factor humano o qual se manifesta na qualidade da decisão que toma perante os outros (as instituições) e si próprio.

As instituições são dos homens, mas enquanto grupo de homens, e, por isso, não reduzem a liberdade individual. Elas surgem das afinidades existentes entre diferentes homens, e as suas”verdades” têm mais substância enquanto reflexo de aturada reflexão e sedimentação do que as interrogativas incertezas de cada um perante si mesmo e perante o mundo que o excede e o ultrapassa. O valor das instituições está afinal na indução de uma certa ideia de liberdade. A ideia de que a liberdade não está em fazer o que se quer mas sim em fazer o que se deve (JPII). É, pelo menos, esta a forma de as justificar, quando convém lembrar que sem instituições não há civilização.

NM é especialista a relativizar e a semear a dúvida, quase como um método. NM é um incrédulo militante, mas com uma certa humana doçura o que não lhe retira o pessimismo, um pessimismo triste, compassivo, auto-compassivo, parecendo às vezes apenas uma criança que não percebe o mundo em que vive, ou que  não o aceita na medida em que não quer crescer.

A história desenrola-se entre a eleição de um novo Papa e a sua resignação. O cardeal Melville, depois de eleito apavora-se com a responsabilidade e entra num período de retiro pessoal sem que nada seja comunicado ao exterior, em que lida com a sua hesitação conversando com psicanalistas, com outros cardeais, com pessoas que se cruzam com ele, mas sobretudo, fazendo uma espécie de rememoração da sua vida acabando por concluir que Deus se teria enganado ao escolhê-lo e que não podia ser ele o Papa para aquele tempo.

 O que conduz a história são as dúvidas do Papa (Michel Picoli) e o diálogo que tem primeiro com o psiquiatra nomeado pelo Vaticano (Nanni Moretti) e, depois com a sua ex-mulher, também psicanalista (Margheritta Buy) que recebeu o novo paciente sem saber que aquele homem comum era, afinal, o Papa que na televisão e a toda a hora aparecia como se tendo recolhido em oração antes de se apresentar e dirigir aos fiéis na janela de S. Pedro.

Melville, o Papa eleito põe as suas dúvidas sobre a sua capacidade para desempenhar a missão à frente do desígnio de Deus, manifesto pela votação dos cardeais. Um dado fortaleceria a inspiração dessa escolha, o facto de ser um cardeal desconhecido que nem estava nas sondagens nem nas apostas, cujo nome nas primeiras tentativas  de eleição nem sequer foi mencionado e que, no fim, é eleito quase por unanimidade. NM não quer reduzir a escolha a uma decisão humana de estratégia política e de conveniências de grupos. Não, ele pretende que a recusa de Melville seja interior, profunda e acintosa,  porque perante a evidência da escolha ter tido uma origem divina. Isto implica um redobrado pessimismo e um corte mais radical entre o homem contemporâneo e a própria transcendência. Um pessimismo perante uma evidência revelada e manifesta.

O filme seria valorizado se a hipótese fosse, no mínimo, verosímil e não é. Todos os cardeais sentem uma enorme pressão e uma enorme responsabilidade quando entram no conclave. Mas uma vez entrados, podendo ser escolhidos e tendo tido uma vida inteira de preparação para poder recair sobre eles essa escolha, é pouco provável que uma crise tão limitadora surgisse, depois de se ter dirigido já vestido, e investido, até à varanda onde revelaria a sua identidade e daria uma primeira bênção aos fiéis que ali se tinham deslocado para o ver e aclamar.

O pessimismo  perpassa toda a história. É a visão de que as instituições humanas, ou a ciência, no caso a psicanálise,  dependem de uma vontade de embarcar numa espécie de fantasia que o nihilista desconstrói sofismando. Melville, os cardeais e o Vaticano, embarcam na religião e nas suas verdades e rituais, mas por de trás de um ar hierático e distante, estão um conjunto de rapazes que gostam é de se entreter a jogar às cartas ou a participar em torneios de voleibol nos pátios do Vaticano. Os psicanalistas sempre em choque com as suas teses terapêuticas depreciando-se mutuamente fazendo-nos crer que cada um tem uma verdade que lhe convém  e em que insiste de forma autista, mas totalmente incapazes de se superarem reduzidos a picardias adolescentes e pouco maduras. O pensamento especulativo, e que é imaginativo, surge como uma ficção que se constrói mas que na verdade não tem correspondência com o real nem com o que o Homem realmente sente e vive. Daí o pessimismo de NM.

Há, também, um vazio profundamente desesperado, quando Melville, o Papa eleito, anuncia a sua resignação para consternação geral dos outros cardeais, e se vira de costas deixando a varanda vazia, só com o vento a bater nas cortinas de veludo carmim. O homem afinal pode recusar Deus e assim abandonar os outros homens. O incapacidade de ver e compreender vence. É a sobreposição da vontade humana ao desígnio misterioso de Deus. Uma desobediência esterilizadora.

Mais um filme que nestes tempos estranhos acaba numa espécie de vazio inapelável, como acontece noutros filmes como veremos a propósito de Melancholia de Lars von Trier.