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quarta-feira, 20 de março de 2013

Registos de Cinema XXII, Et si on vivait tous ensemble? de Stéphane Robelin, 2011



Sendo parte comédia, parte drama, o que normalmente se pode traduzir por brincar com coisas sérias, “Et si on vivait tous ensemble?” é um filme triste. É de uma tristeza ainda mais triste porque trata com superficialidade temas como a velhice e a dependência, amizade e a traição, o altruísmo e a vaidade.

Há nas personagens uma auto-suficiência que as impede de uma visão da vida para além dos limites do seu interesse imediato, incluindo esse interesse de viverem todos juntos, por uma mera conveniência: preferem estar juntos do que a ser ajudados em impessoais lares de idosos.

As personagens procuram viver o presente e nisso são optimistas. Vence-se cada dia com o prazer possível que é, naquela idade, de certa forma, resignado a um passado que já não se pode mudar. Um prazer que é, no presente, a sensação de viver do balanço das memórias que se vão adensando com a ultrapassagem de certa curva da idade. O tempo, essa irremediável sucessão, deixa o passado ir-se instalando e esse passado, doce e irrepetível, vai tomando lugar, preenchendo o espírito e toldando a objectividade à medida as faculdades desaparecem e as obsessões, antes domadas pela educação e pela capacidade de apagar para evoluir, se soltam. 

É desses passados, aparentemente esquecidos que se desenterram baús abandonados que, por vezes, são caixas de Pandora, prontas a infernizar vidas mergulhadas em águas paradas, profundas. Vidas que deixaram de acreditar no milagre que perderam a ingenuidade e deixaram de lutar, preferindo a sonsa gestão diária das aparências, dos prazeres mundanos e das alegrias vazias, apenas convencionais.

O que as amargura e entristece?, viver na solidão para que os seus actos as remeteram. A consciência de um certo vazio existencial que emerge da cumplicidade com o mundo desiludido e indiferente ao amor e à ternura, à verdade.

Que vale, de repente, alguma coisa a que dedicamos o nosso amor e a nossa paixão, em que confiamos como se confiássemos em nós próprios, e que, subitamente, vemos espezinhada pela traição, pela indiferença e pelo egoísmo? Um enorme vazio instala-se. Afinal nunca nada terá sido aquilo que pensáramos que era, e as pessoas que à nossa frente sorriam e nos falavam não eram elas mas outras que, sem verdade nem coragem, atrás delas se escondiam sem nos falarem nem nos sorrirem.

As personagens de “E se vivêssemos todos juntos?” parecem ser, no final, tolerantes o suficiente para tudo ultrapassar depois de um breve choque. Mas são personagens de um filme em que o relativismo e a superficialidade imperam. Porque não cada um fazer só o que lhe apetece e ter maçadoras responsabilidades que implicam sacrifícios e abdicar de nós próprios por valores superiores? Aqueles que permitiram existirmos num mundo em que pelo menos há a ideia de civilização, se é que isso importa.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Registos de Cinema X, Impardonnables de André Téchiné, 2011


Imperdoável, não é o mal que fazemos uns aos outros, mas sim a crueldade desse mal. A crueldade é o mal que fazemos sabendo que estamos a fazer mal. Existe, porém, uma forma de crueldade que diria passiva, mas trágica, originada pela vulnerabilidade e permissividade de um carácter indefinido e, de algum modo, intimamente indiferente.

Vingança, egoísmo ou indiferença, são três formas de crueldade. Imperdoável. A filha, Alice (Mélanie Thierry), que se vinga do pai, indiferente ao marido e à filha; o egoísmo do pai, Francis (André Dussolier), que manipula e usa os outros como objectos do seu prazer e das suas necessidades (sobretudo as artísticas); e a indiferença de Judith (Carole Bouquet), a mais imperdoável das crueldades, e a mais trágica.

Entre vingança, egoísmo e indiferença orbitam outras personagens que vêm evidenciar os comportamentos das três principais. O centro é Judith. A crueldade que faz sofrer psicologicamente. Judith a indiferente, para quem o amor é a medida da expectativa do outro, e não do envolvimento de si própria, é a crueldade superlativa, como o objecto amado que está ausente, distante e inapreensível. Está ausente e pode estar noutro lugar, é indiferente. Um corpo que se oferece sem pedir nada em troca porque lhe é indiferente. Um corpo que fica, na sua beleza perturbante, morto e apenas receptivo à intromissão, à devassa e à manipulação. Um corpo que se entrega mas não se dá.

Essa indiferença, que é? A anestesia da dor de um amor perdido, de uma decepção castradora, de uma traição mortal, de um medo, que é? Esse o mistério da indiferença, o silêncio em que se apaga e se esconde. O apagamento do ser perante os outros, o passado, a realidade. Apenas se dá como ausência, como vazio, como fantasia efémera sem finalidade nem compromisso. Como se entregar-se fosse um dever e não amor. O outro, os outros, ficam com uma ficção, uma fantasia sem realidade, perante si próprios, sós, sem reflexo, sem nada. Judith a indiferente, é uma figura escorregadia, talvez fiel por dever, mas infiel por devoção e cuja implacabilidade a torna uma deusa para idealistas e românticos e um puro objecto de prazer para manipuladores e oportunistas, como Francis.
Se Judith representa a indiferença como ausência e impassibilidade, cruel impassibilidade, Francis, representa o egoísmo, o egoísmo manipulador, que transforma tudo à sua volta num instrumento das suas necessidades, interesses e estratégias. Como todas as pessoas, talvez o próprio Francis não tenha a percepção de si mesmo tão envolvido que anda com os seus truques, as suas artimanhas e os seus esquemas. A dimensão dessa distância de si mesmo é dada pela gargalhada cruel e mortífera da filha quando ele lhe diz que quando está apaixonado não é capaz de escrever. A gargalhada despedaçante foi uma forma de dizer ao pai que ele não é capaz de amar e, por isso, não estar a escrever o seu livro terá outra razão. Qual será essa razão? Francis acaba por denunciá-la quando no final diz que depois de viver um amor, ou melhor uma paixão, está de novo em condições para se envolver com um novo romance, com a escrita de um novo livro. O seu processo criativo é, assim, a razão de ser das suas relações ditas amorosas. Forja uma relação, segundo a gargalhada cruel da filha ferida pelo seu desamor, para dela se libertar e, então, escrever. Tudo forjado?, tudo natural? ou simples coincidência? Para a filha, que o procura ferir e que o procura perturbar, é a sua própria natureza que o faz  ser assim e nada nele é sincero, autêntico, nem espontâneo. Excepto a reacção sentida e sofrida à sua gargalhada-denúncia.

As restantes personagens acompanham o tom do filme como se a natureza humana fosse toda ela useira e vezeira em crueldades, em males que fazemos uns aos outros e de que acabamos sendo as próprias vítimas, pagando-as com exclusão, isolamento e distanciamento. E a própria cadeia de maldades faz com que sendo vítimas nos tornemos carrascos.
A crueldade humana é o que é imperdoável. Mas a crueldade não é a humanidade.