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terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Registos de Cinema XXVI, Sono de Inverno de Nuri Bilge Ceylan, 2014


Inverno e hibernar têm semelhanças fonéticas como se hibernar fosse a acção do inverno; Sono pode ser um dos sinónimos do estado de hibernação, dormir pode ser hibernar ou vice-versa.

A acção de Sono de Inverno decorre entre poucos quilómetros de várias distâncias, distâncias que os homens correm, vencem a pé quando necessário, sem um esforço tão grande que os impeça. Essas poucas distâncias são a geometria de uma pequena sociedade isolada do mundo, de um mundo de que recebe os seus ecos mas sem a sua presença, um mundo distante que pode quase ser irreal, de sonho, ou de perdição. Na aldeia vive-se a realidade das rotinas e dos conflitos, vive-se a presença do tempo lento e dos corpos que se enfrentam, quase sem protecção e que se contêm no instinto da sobrevivência. Um jogo a roçar os limites da provocação e do poder contra a tolerância, a indiferença e a abdicação de si. Vive-se e representa-se no afã de personagens que não querem dar-se à luz, mas que persistem nas suas máscaras, jogando e sonhando sem qualquer desejo de realidade ou concretização. Vidas suspensas. Em hibernação.

O inverno é a capa, feita de neve, de uma neve que dissolve e apaga a humanidade da crosta terrestre e a remete ao útero primitivo, à gruta, às grutas dentro das quais as casas da aldeia são construídas. A neve é a rede que mantém agrupados os prisioneiros do tempo e do espaço infinitos. A casa é o lar, o fogo, a protecção. Perdê-la seria perder tudo, sobretudo, naquele inverno e naquela neve que apaga e branqueia as diferenças.

Mergulhadas no isolamento, as personagens irrompem da escuridão e da dissolução, através das palavras o sono é vencido pela vigília, o diálogo que une os seres convoca as memórias e a vida. A palavra supera o sono, o esquecimento e a morte. Como uma luz que alumia por dentro, a palavra, a sucessão de palavras, as frases, os diálogos, propõem uma revelação, uma consciência e o jogo inicia-se.

As palavras servem para compreender e humilhar, para se compadecer e para acusar, servem para cada um se dissimular, ou se queixar; servem para trazer o que se esconde na alma para a comunhão da mesa. Um personagem, velho, vai totalizando os diálogos: com o aventureiro que viaja de mota sem destino; com o Imã submisso que não se consegue afirmar e se desfaz em desculpas e mortificações; com a irmã que se escondeu da vida e do mundo mas vive arrependida de ter deixado o marido; com a mulher que desiludiu sem a ter querido iludir e que o recrimina pela sua solidão; e, finalmente, com a tertúlia do seu amigo que o recebe em sua casa e com quem fica com outro conviva a discutir a consciência humana, a sinceridade dos homens e a consequência entre pensamentos e actos. Por fim, regressa a casa e senta-se a escrever para a eternidade a História do Teatro Turco.

Estará Nuir Bilge Ceylan a escrever uma metáfora sobre a Turquia actual? Seja pela hesitação do mundo rural perante o mundo urbano; seja pela abdicação da viagem; seja pelo isolamento consentido, procurado; seja pela persistência de uma cultura clássica universal (o teatro) e de uma tradição ancestral (religião) que não se querem rejeitar nem se conseguem abraçar?

Pretenderá ir mais além de um drama de costumes ou de um conto moral, à la Rhomer? O homem recrimina a mulher que recrimina o homem no choque dos seus imaginários e das suas expectativa quase sempre frustradas; o senhor e o escravo digladiando-se através de terceiros – o filho do segundo ou  a mulher do primeiro – numa luta pelo poder moral; o Imã que, fiel à paz e à concórdia, está sempre pronto para o sacrifício do seu orgulho ou da sua vontade; a criança que ferve em ódio inculcado pelo pai que se deixou humilhar por não se deixar humilhar; a irmã e o irmão reunidos na casa-mãe interceptando pensamentos e uma certa educação que seguiu caminhos diferentes e até antagónicos mas que mutuamente se provocam pelo sentimento do que perderam; os amigos numa tertúlia que o vinho vai aquecendo até ao ensaio de um conflito que o corajoso vinho faz brotar mas que logo se apazigua numa evasão ou num vómito; ou o regresso a casa sem glória desistindo de pelejas e futuros irreais mas ausentando-se do fluir do tempo para lhe deixar uma História do Teatro Turco.


Ou estará concentrado nos conflitos humanos, mais do que na sua moral ou nos costumes que lhe dão sustento, conflitos que são o fulcro de toda a humanidade. Por vezes parece que estamos a ver Ingmar Bergman, o mestre sueco que da periferia norte da Europa se vem encontrar com Nuir Bilge Ceylan da periferia do Sul. E mais do que os interesses das pessoas e dos seus conflitos entramos no conflito das ideias que as personagens encarnam: o amor, a consciência e o castigo. O amor surge no debate sobre o castigo. Castigar é impedir a consciência do arrependimento; dar a outra face é permitir a iniciativa da emenda, da correcção introspectiva e definitiva. O amor não pune, deixa descobrir, sem pressa.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Morte: nós e os outros



Um estranho sentimento acode-nos perante a morte de alguém querido: para onde tenha ido esperará por nós. Foi apenas primeiro ou antes. Assim, parece. Perante a morte de alguém que fazia parte do nosso mundo, do rosário das nossas contas, que sabíamos ir encontrar a qualquer momento por muito tempo que já tivesse passado desde o último encontro, o seu tempo passou, quer dizer, deixou de estar nas malhas do tempo, conquistou a eternidade, onde, sem tempo, nos há-de ver como nós não nos conseguiremos jamais ver porque não nos concebemos fora do tempo onde a nossa essência habita, onde nós habitamos, mesmo não o sabendo.

Outra ocorrência, é a perspectiva de que esse que parte nos deixa a nós para se encontrar com aqueles que também já fizeram parte do seu e do nosso mundo, aqui, e que já partiram. Com amigos cá e lá o nosso coração hesita. Sempre a vida terrena é preferida, aparentemente e pela maioria, à vida eterna da qual apenas se pode esperar: nos transcenda, transborde e surpreenda. A partir da nossa forma e modo de pensar é inimaginável. Porém, todos partimos e, por isso, não valem a pena pesadas manifestações que protestem contra essa realidade. Melhor é aceitá-la com as forças que encontrarmos. A morte não é estúpida nem deixa de ser. É a garantia da vida e da sua renovação. A morte é como o nascimento. Um momento da passagem pela existência. É o último. Mas é o que se dá numa passagem da consciência actual de que a morte existe e de que a vida tem um sentido e uma realização, íntima e intransmissível, para uma plenitude ou um absoluto de que o pensamento humano dá notícia embora não possa desocultar. Pois se pudesse, já estaria nessa dimensão de que está separado por uma condição, uma contingência e uma limitação de que não conhece a razão. Diríamos que o mal é um mistério de que a bondade, a beleza e a verdade são a luz da redenção. O nosso coração, a nossa razão e a nossa imaginação nutrem-se do que reduz a acção do mal. O mal, episódico e evanescente, é apenas uma acção temporária, diria instantânea, de afastamento do bem, do belo e da verdade. Mas a bondade, a beleza e a verdade não nos permitem senão prepararmo-nos para a passagem de que a morte é o instante irrevogável.