terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Registos de Cinema, V: Moon, de Duncan Jones, 2009



Registo de uma antecipação do futuro, ou investigação sobre a situação de um clone, ou da própria clonagem? Entre a estética recuperada (deveria dizer citação?) dos filmes de ficção científica, ou deveria dizer ficção tecnológica?, —o preto e branco minimalista, estadia num lugar sem vida (sem água) apenas rochoso, inerte, o isolamento humano num meio adverso e impossível, sem condições vitais e, por isso, todo construído pela artificialidade em que o diálogo se processa com as chamadas inteligências artificiais (Gerty o computador/robot)— e a situação potencial de um ser humano que se descobre como um clone, perde-se a oportunidade de uma investigação filosófica. Ficam as sugestões.

A estética serve de porta à recepção e ao reconhecimento do filme. Além do habitual rol das citações, escreveu-se muito sobre a irrelevância (será que é?) da filiação de Duncan Jones —filho de David Bowie, ele próprio um fascinado e um contador de histórias de ficção científica bem como um adepto da transformação de realidades a partir da manipulação do corpo e da consciência, muitas vezes, construindo assim os seus alter egos— e das semelhanças com 2001– Odisseia no Espaço de Stanley Kubrik (podíamos acrescentar a série de televisão Espaço 1999). Por aí o filme encontrou uma aceitação e um lugar.

Porém, o aspecto mais interessante que se levanta e cujo aprofundamento ficou muito aquém do desejado, é o problema da identidade individual, e esse tema é introduzido por via da manipulação genética que permite a criação de clones que não só reproduzem um ser igual a outro como, também, lhe incorporam as memórias e os sentimentos do ser clonado, entretanto desaparecido. O tema prestava-se e até recuperando o David Cronenberg de eXistenZ.

Uma sucessão de clones (com três anos de tempo de vida) ia providenciando uma continuidade do trabalho de recolha de helium-3 do solo lunar para enviar como energia limpa para a Terra. O astronauta que aparece, parece mas já não é Sam Bell, o humano que foi enviado para a missão original. É já um clone que, por causa de um acidente em que parecia ter sucumbido, deu origem ao processo de substituição, acabando, depois de recuperar forças, por voltar à base e deparar-se sujo e ensanguentado, com um clone seu (imaginou ele) em perfeitas condições físicas e de aprumo. Depois de se confrontarem suspeitosamente descobriram que ambos eram clones e, assim, descobriram a trama que a empresa Lunar Industries urdira para garantir a colheita do helium-3.

Fica a clonagem como tema a explorar, o resto é um thriller lento. As semelhanças entre os clones são indistinguíveis, mas a memória também. O processo incluía esse chip. Para quê? Para afirmar que o clone não era um robot mas sim um humano? Porquê a memória do astronauta inicial? Para que sendo humano tenha tido uma vida que justificava a estadia naquela base. Mas serão as memórias dos homens um chip apenas que se incrusta? Que realidade se criou quando os clones se encontraram? O absurdo.

Ou seria, então, todo este processo da clonagem apenas o pesadelo de um moribundo carcomido pelo isolamento e pela artificialidade racional sem amor: o convívio num mundo inerte com uma inteligência artificial?

Registos de Cinema IV: Ne change rien, de Pedro Costa, 2009



Torna-se muito evidente, quando percorremos alguns séculos de pintura na Galeria dei Uffizi em Florença, a transformação do conceito de espaço em que as figuras se vão enquadrando. Porém, o que vai mudando esse conceito de espaço são as próprias figuras, ou antes, a sua origem. Com o passar dos séculos as figuras representadas vão abandonando um fundo indistinto e mono cromático para surgirem em situações encenadas, primeiro isoladas, depois envolvidas por outras figuras, e mais tarde, já dominadas pelo conjunto, isto é, deixam de ser emanações para serem personagens em intrigas divinas, cósmicas e, finalmente, humanas. Em quatro ou cinco séculos, o homem e o que ao homem interessa, passa do espaço inexistente de onde as figuras surgiam como aparições para um mundo organizado em que as posições e os poderes se confrontam num palco humanizado.

Já no século XX, uma das características da pintura, foi, com arte abstracta, o aparecimento de uma nova categoria de “aparições” que muitas vezes caíram na composição gráfica, e até abriram caminho ao design gráfico, mas em que o conceito renascentista de espaço, o espaço perspectivado que enquadra as figuras, os seus dramas e conflitos, e que de certo modo sobrepõe o mundo aos homens, é de novo abandonado e por muitos considerado como uma irrupção do irracional num stablishment a precisar de ser provocado, talvez para libertar o homem de um certo acomodamento. A representação que nega o espaço ou pelo menos o secundariza sobressai, magnificamente, no claro-escuro altamente contrastado da fotografia de Ne change rien.

A procura de um regresso à ligação entre o homem e o mundo das ideias, o conceito do corpo como aparência de uma alma sediada noutro lugar que se revela pela palavra e pela música, numa aproximação ao mais autêntico classicismo, o grego, parece ser o que de mais notável releva neste documentário de Pedro Costa de um ponto de vista estético. É certo, que não se trata da expressão final da obra de arte como entre os gregos se exprimiu na escultura, arte que se sobrepôs à pintura, então. Mas porque a opção de Pedro Costa para exprimir este sentimento do mistério da voz, através da palavra e da música, se faz através do incessante ensaio, onde toda a humanidade das “figuras” se revela no acto de dar à luz, e ao éter, os momentos dolorosos e felizes do nascimento da obra.

O cinema nunca deixa de ser registo, e até por vezes voyeurismo, mas sempre como uma luta pela memória, pelo que se não quer perder, e esse sentimento de preservação do ofício de registar, de fazer viver a memória, está presente no cinema de Pedro Costa. Na sua forma contemporânea, a arte é substituída pelo seu fazer-se, por isso, referi a possibilidade de um voyeurismo, que passa pela intromissão de um observador na intimidade do parto da obra de arte e ficar nesse registo toda a densidade criadora que obra final nem sempre exprime, ou exprime de outra forma. Todavia, essa intromissão não rompe o mistério e o enigma, nem despe nem expõe a intimidade do acto criador. Talvez porque faz ver pelo filtro da aparição dos corpos sem espaço, como se fossem iluminações, que nos fazem ver como se víssemos para dentro e logo na primeira cena do filme em que a banda com Jeanne Balibar ao centro é povoada de pontos de luz.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Fernando Pessoa e a nova poesia portuguesa



O que F. Pessoa tentou antecipar foi uma razão de ser de Portugal e do seu destino, urdidos num estudo de história comparada, ou seja, deduzir a consciência de uma identidade a partir da visão poética inaugurada por uma plêiade de poetas num determinado momento histórico, à semelhança da interpretação que fez em “A Nova Poesia Portuguesa” ao estudar as relações da poesia e da política em Inglaterra e em França, povos de superiores, que inscreveram a sua mundividência na história universal.

O homem comum vive a vida imposta pelas contingências existenciais determinadas pela política, pela cultura e pela economia. O poeta destaca-se dessa fatalidade de fundo e introduz tropos poéticos —mentais e sentimentais— que acordam no homem comum uma outra vida encoberta e reprimida pelas necessidades imediatas e dá-lhes uma nova vitalidade, que o pode tornar capaz de actos heróicos dirigidos a uma outra dimensão que a do simples viver acabrunhado.

Os poetas, cada um a seu modo, são heróis que convocam a heroicidade. Convidam à libertação e ao abraço do sacrifício. A radicalização que a poesia traz, porque é integra, isto é, mental e sentimental, assusta o status quo e, logo, é circunscrita e vigiada para que não se empolgue, nem galvanize os homens comuns adormecidos e temerosos. O perigo da poesia é a convocação do herói encoberto que jaz no íntimo de cada um e que é aquela visão, que a todos sendo revelada no simples acto de poder pensar, permanece oculta e repudiada pela inconveniência de que se reveste.

Todos os “Pessoas” apelam a uma consciência do mundo como o lugar onde cada eu está distante da sua razão de ser e que, por isso, adia o seu destino. Esse homem desencontrado percorre muitos caminhos, muitas identidades, muitos heterónimos, mas em todos eles uma unidade substancial se adivinha.

Ao contrário das filosofias da existência ou do ser, que sempre cristalizam e falecem sem seiva renovadora, na visão que F. Pessoa induz, nasce um homem futurante, despojado, que se despe das ilusões do ser até à nudez completa e, então, contemplativa da verdade. Da verdade que estiver no final do caminho para receber aqueles que a ela se entregaram sem reservas nem calculismo. Só assim, aliás, é possível não entificar aquilo que, se o fosse, logo se negaria. Aceitar esta abertura ao que não se prova nem circunscreve, é o sentido último, é a finalidade do movimento da razão criadora, é o caminho iniciático, individual, que a consciência pátria propicia. Consciência pátria como mediação do saber universal.

Os tropos poéticos progridem para teoremas filosóficos e o saber que a poesia intui adquire expressão e dimensão humana e transcendente na filosofia. O movimento poético antecede, anuncia e propicia o movimento filosófico que lhe é implícito. Em Portugal, a poesia e a filosofia inauguraram essa visão universal que se distingue pela recusa da redução da verdade ao ser. Em Portugal, isto é, nos filósofos portugueses a redução do ser à verdade inaugura uma visão que levou Álvaro Ribeiro a falar, não de um supra-Camões mas de um supra-Dante e esse supra-Dante seria a filosofia portuguesa.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Que Mensagem para Portugal?



Um dos textos seminais da portugalidade —Mensagem— de Fernando Pessoa, fala-nos de uma Pátria a cumprir-se. Num tempo em que o relativismo confunde os espíritos, o poeta da Ode Marítima, apesar de idolatrado pela publicidade que atingiu, permanece obscuro e ineficaz na solidão dos seus pensamentos, da sua imaginação e da sua sensibilidade subtil. A divulgação acaba por matar a obra e o autor.

No caso de F. Pessoa a sua heteronímia permite diversas aproximações em que logo se podem classificar os neo-aderentes quase sempre mais interessados no reflexo e na oportunidade da sua identificação com o escritor do que numa autêntica exegese sapiencial que trouxesse à humanidade alguma luz para os seus problemas, enigmas e mistérios. De facto, F. Pessoa, permite a cada um encontrar-se na história das personagens literárias, permite que cada um renasça como artista para si próprio e para os outros, por via da invenção pessoana, sobretudo, pel’O Livro do Desassossego.

Os heterónimos não são vistos por cada um como um todo que exprime uma totalidade do real, mas como um somatório de oposições e contradições que fazem do pensamento, da imaginação e da sensibilidade subtil de F. Pessoa um sincretismo relativista que se amalgama numa indecisão.

Teixeira de Pascoais escreveu em O Verbo Escuro que o Poeta era aquele que subia aos “píncaros da vida” e depois voltava ao mundo para contar o que viu aos outros homens. O que terá visto F. Pessoa? O que será nele visão do mundo e o que será nele visão profética? Estas interrogações parecem-me ser as balizas de uma interpretação da obra de Fernando Pessoa. Só assim se poderá atribuir substância à Mensagem e, só assim, ela nos fará pensar para além das métricas, das rimas e da geometria.

A actualidade da Mensagem é a actualidade de Portugal, uma pátria por cumprir, que tarda em cumprir-se. No horóscopo de Portugal, F. Pessoa determinou o ano de 1978 como o ano da sua morte. Terá ficado, Portugal, irremediavelmente por se cumprir?

Orlando Vitorino, filósofo e dramaturgo, tradutor e intérprete de Hegel lembrava com frequência uma frase do filósofo alemão: A ave de Minerva levanta voo ao anoitecer. A ave de Minerva é a sabedoria; a noite é a morte. Figura preponderante do movimento da filosofia portuguesa, Orlando Vitorino (1922-2003), atribuía ao movimento filosófico do início do século XX, o momento em que a consciência da pátria, ou a consciência de Portugal, surgia como acto reflexivo entre os portugueses através, sobretudo, da filosofia e da poesia que sempre andam juntas: Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro e José Marinho, Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoais, José Régio e Fernando Pessoa, foram figuras basilares não só de um movimento que se distribui por várias iniciativas, da Renascença Portuguesa à Presença, como pela intervenção política.

A singularidade de Portugal, a partir de uma reflexão poética e filosófica, adquire uma sabedoria que extravasa o proselitismo nacionalista ou os estrangeirismos internacionalistas. É dessa sabedoria que levanta voo ao anoitecer que fala Hegel. É o espírito a libertar-se do corpo que se corrompe e morre. Imerso, ou antes, afundado em intrigas, em vil existência no dizer de Camões, há três séculos que Portugal se apaga, se corrói por dentro, se suicida. Sentimos agora, mais do que nunca esse apagamento, essa corrupção, esse suicídio. Vemos muitos a desistir. Vemos muitos de olhos postos num estrangeiro salvador, Ninguém, ou muito poucos, pensam no que F. Pessoa, aclamado, admirado e citado, deixou como mensagem futurante. Que nos falta para cumprir Portugal? O que é cumprir-se Portugal?

sábado, 28 de novembro de 2009

Registos de Cinema III: Tetro, de Francis Ford Coppola, 2009



Segredos de uma família onde se escondem os dramas que são as razões profundas de comportamentos misteriosos e inexplicáveis. Tetro tem a chave do drama mas o pudor e a revolta levam-no a afastar-se de todos para viver uma existência anónima num bairro pobre de Buenos Aires, cidade onde estão as suas raízes, mas onde as memórias se podem enterrar.

Não é a vida que se vê, a vida pública, uma mortalha dourada onde se esconde o drama de cada um? No seio da intimidade jogam-se dados codificados. Os pecados inconfessáveis codificam-se. O seu relato codifica-se. Falar em código liberta, mas é falar apenas para quem pode perceber.

O que há de complexo nas famílias é sempre os jogos de poder, um poder feito de uma miscelânea de sentimentos e de actos manipuladores, alguns brutais e com mais consequências do que se imagina. Dentro das famílias tudo tem uma força que nas sociedades não existe. A força de um destino, de uma natureza, de uma consanguinidade (pais e irmãos) ou de uma comunhão de frutos (casais). A família implica um vínculo que não se desfaz nunca, por isso, obriga à mentira para que seja suportável, ou ao abandono e ao esquecimento. É a opção de Tetro, incapaz de lidar com o destino imposto por um pai prepotente, castigador e vingativo.

Tetro não é um génio, como o pai, e, por isso, não o enfrenta. Adquire um estatuto de génio potencial por ter uma história para contar, a sua e a da sua família, mas tudo o que deseja é libertar-se dela. É um puro e um ingénuo, ferido e enlouquecido, que tarda em revoltar-se, porque tarda em revelar o seu drama.

Tetro, vê na origem do conflito familiar, a rivalidade, e é sobre ela que escreve, em espelho, a sua história. Nas famílias a rivalidade é mais dramática porque há consanguinidade, porque há uma origem comum a partir da qual cada um vai evoluindo até ao confronto de personalidades e em que a justiça não é medida com pesos diferentes, mas com o mesmo peso. O drama de cada um fica mais exposto, mais evidente. As oportunidades naturais são as mesmas, mas um vencem e outros não. E esse insucesso é, muitas vezes, acentuado pelos vencedores ao tiranizarem os vencidos, ao subjugá-los cruelmente, como fez o pai em relação ao tio. O pai, um maestro aclamado mundialmente, pede ao tio (seu irmão) que mude de apelido. A vaidade a querer dominar sozinha o Olimpo.

Tudo nas famílias tem proporções desmedidas e adquire significados que só os próprios sentem, quase irracionalmente. A mãe de Tetro, cantora de ópera, morre num desastre de automóvel motivado por uma distracção de Tetro. O pai chega ao local e vê a mãe morta. Olha para Tetro como quem nunca lhe há-de perdoar. Mais tarde vinga-se, ao mostrar-lhe que lhe pode tirar o que ele ama. A traição é servida como exercício de poder absoluto. Ao roubar-lhe a namorada o pai diminui-o, torna-o um ser inferior perante ele e perante o mundo. Porque o faz? Porque pode diz-se no filme. Seria isto uma definição do poder. Mas é também uma vingança, porque afinal, Tetro, também o perturbava, pois tinha interferido com o seu mundo o qual supunha ser um reflexo de si e totalmente manipulável pela sua vontade soberana.

Da vingança de Tetro, só Tetro sabe. Por isso, a sua história, a sua obra, não era para publicar. A sua obra estava viva. Não tinha um fim para lhe dar.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Registos de Cinema II: Séraphine, de Martin Provost, 2008



Da mesma forma que uma personagem é um encontro de um ser com um destino de que não pode desviar-se, seres reais, ou deveria dizer fictícios?, caminham toda a sua vida por uma via estreita da qual, mesmo podendo, não se desviam. Para fugir ao mundo, por infantilidade, por loucura, por soberba, por “visionarismo”, não importa, por alguma razão se concentram numa parte de si e da sua imaginação e se de dedicam com fervor religioso a uma identidade que esculpem para a imortalidade.

Séraphine de Louis (dita de Senlis, 1864-1942) foi um ser que se tornou uma personagem pelo voto devocional ao chamamento de uma voz, de um anjo da guarda. Todo o seu trabalho como pintora foi uma espécie de caminho para um fim anunciado que a conduziu à loucura.. Vivia numa alienação do mundo quotidiano, ainda que nele trabalhasse com sentido prático (ter dinheiro para as suas telas e pincéis). Todo o seu tempo era dedicado à pintura que uns chamavam “naive” e outros primitiva.

O aparecimento do coleccionador alemão Wilhelm Uhde foi uma luz que a iluminou, como que a confirmação do que ela sempre esperara, ou acalentara. Ele reconheceu-a, ele apoiou-a, enalteceu-a e deu-lhe uma vida como pintora. Ela tinha finalmente descoberto o seu amor. Na sua loucura gastou todo o seu dinheiro num vestido de noiva e numa mansão presumindo que se ia casar com Uhde.

A força de ser uma personagem conduziu-a à mesma tragédia de qualquer personagem: o choque com o real foi irreparável. Séraphine saiu do benefício da dúvida que todos lhe davam e, vestida de improvável noiva, passeou de madrugada pelas ruas da vila anunciando que chegara o dia. Foi internada. A sua pintura sobreviveu. Naive.

E ela, que delirou pelos campos de flores, amou as árvores e se banhou em conúbio com o rio, encontrou a paz no vento que soprava nos prados e nas colinas onde se sentava com os olhos fechados e com um “petit sourrire”, vingado, de quem encontra comprazimento naquela suave e simples sensação. Os elementos foram os seus amantes.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Seis personagens à procura de autor



O Pai, uma das seis personagens que irrompe num ensaio de teatro à procura de um autor que lhes permita viver até ao fim a tragédia que os une, pergunta a um estupefacto encenador se ele se julga um ser mais real do que qualquer personagem.

O encenador, um jovem auto-confiante que apenas vislumbrava, ao longe, o mistério do teatro, olha incrédulo, mas temeroso, para a personagem que se lhe dirige e responde-lhe, com indignação, que —Obviamente que sim!

A personagem, então, explica-lhe por que é que ele está enganado: um homem vive a sua vida de tantas formas que acaba por ser em momentos ou situações diferentes mais do que uma personagem, acabando por não ser, verdadeiramente, nenhuma delas. Tudo nos homens em geral acaba por isso por ser fictício e não autenticamente real. Já as personagens só são, e nunca deixam de ser ,aquilo que são: a sua realidade não é fictícia. As personagens são reais, isto é, têm a si agarrado o seu destino.

Com esta posição, Pirandello, inverte os papéis comummente atribuídos à vida e ao teatro. A vida torna-se numa ficção onde os homens se iludem e o teatro devem o palco da realidade onde ninguém se esconde e onde tudo tem de acontecer, por causa da verdade. Ainda que a verdade seja uma tragédia para as personagens, como anuncia o Pai quando roga ao jovem encenador que os deixe viver a tragédia que trazem no seu seio.

As personagens adquirem realidade a partir do momento em que nascem no espírito ou pelo espírito de quem, imaginando-as, lhes deu uma existência potencial. Só que no momento em que nascem, adquirem uma existência trágica, porque nessa personagem nascitura está inscrita toda a fatalidade de um destino que determina todo o seu ser. A personagem, sendo real de algum modo não pode aspirar à liberdade: é-lhe vedada toda a errância. Por outro lado, interrogamo-nos, alguém é livre fora da razão que lhe deu origem?

O que as personagens cumprem é o carácter necessário implícito nos conflitos. Esses conflitos não estão na natureza mas na vida espiritual, pois é aí que todas as questões humanas se colocam. O que tece o destino das personagens é a sua fidelidade lógica àquilo que representam, ou seja, a ideia. O lugar que se atribuir à ideia dará a dimensão da personagem.

O teatro é real e não fictício na medida em que soleniza e mostra os actos humanos de libertação, sendo o espelho de uma realidade que no dia a dia se esconde. O teatro liberta, por não ser espelho do mundo sensível, mas do mundo inteligível.

A liberdade dos homens não é a ilusão da anarquia nem o equilíbrio das liberdades individuais ponderadas. Libertar-se é cada um descobrir e reconhecer a sua singularidade. Como as personagens, que afinal, talvez não sejam prisioneiras de uma ideia, mas a expressão da própria ideia.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Registos de Cinema I: Inglourious Basterds, de Quentin Tarantino, 2009



Que dizer do mais recente “Tarantino”? Em primeiro lugar, a realização (e a montagem, e a música): planos e sequências que nos prendem a atenção pelo demorado crescendo do suspense dado pelo retardamento de conflitos eminentes, previsíveis mas sempre incertos. A chegada, a aproximação e o diálogo na quinta onde estava escondida a família judia na cave é feita de um crescendo lento, sempre tenso e em que o desenlace, sendo previsível, é retardado até quase poder ser abandonado. Essa demora narrativa é feita com deleite, intensidade e crueldade, tudo formas de apelo a uma concentração e a uma contenção física e psíquica do espectador que revela o lado epicurista da realização, manipulando os sentidos, dando-lhe imagens e sons que o captam e o extasiam.

Depois o enredo: quadros aparentemente distantes e não interligados onde se vão apresentando personagens as quais se vão revelando e caracterizando em ordem a um final que se começa a antever, um grande final para onde todos confluem, num espectáculo festivo não obstante a carnificina pirotécnica que a música torna banal relaxante e até cómica.

Apesar do tema, o filme não procura culpados, nem inocentes, nem bons nem maus. Centra-se no destino objectivo de cada personagem (mais personagens do que estereótipos) cujo empenho denodado os leva a cumprir a sua missão de acordo com a sua personalidade, o seu carácter e a sua posição.

Também uma caracterização por povos fica subjacente: os americanos —primários e soberbos—, os ingleses —corajosos e desastrados—, os franceses —indecisos entre a heroicidade e a cobardia, os alemães —sobredotados e cruéis (como se duas personalidades antagónicas os habitasse e transfigurasse a cada momento)— e, finalmente, os judeus —sobreviventes na adversidade pela sua obstinação.

No que tem sido mais aclamado, sobretudo depois de Death Proof, Quentin Tarantino “revisita” os chamados filmes de série B americanos que entretinham um público menos exigente que procurava “sensações fortes”, quer dizer, choques emocionais que activassem instintos básicos, que depois, banalizavam pelo recurso ao humor. Pelo humor que é dado, muitas vezes, pelos exageros sanguinários contrastados com uma música aparentemente desligada ou indiferente às imagens, relativizando-as, num processo catártico dos instintos, ditos, primários dos homens.

Há nisto, qualquer coisa de profundamente actual ou contemporâneo: o que a cultura rejeita, se for “citado” pela cultura, recebe uma validação e uma legitimação intelectual. Ou seja, um filme de série B é lixo comercial, mas se for uma citação de Q. Tarantino é bom e interessante.

Claro que a citação tem um sentido crítico que o citado, o original, não vislumbra. Porém, a essência do divertimento é a mesma: a explosão de sensações sem mediação crítica que subjaz em cada personagem.

Em todo o caso, estamos perante a demonstração que os mesmos temas e as mesmas formas se distinguem nas obras pelo sentido simbólico que conseguem atingir.

Conta-se que Fernando Pessoa escreveu o poema “O Menino de sua Mãe” para demonstrar a dois companheiros de tertúlia que a imagem de um poster de mau gosto representando um jovem guerreiro morto, menos útil que a sua cigarreira breve, pode ser um bom poema se tratado com arte e sabedoria.

sábado, 31 de outubro de 2009

Estar aí


Não importa em que tempo, porque cada momento é todo o tempo, cada um está aí para ser totalmente. Não há um tempo futuro para se ser o que se virá a ser porque, quando esse tempo futuro, imaginado, desejado ou até temido, vier será um presente tão presente quanto o presente actual. O futuro é tão ilusório como o passado, feitos de imagens que se esvaeceram e cada um recria no presente em que está.
Estar aí não é deixar-se estar, arrastando um corpo pesado até ao seu definhamento, nem tão pouco ausentar-se na expectativa de um futuro miraculoso mas dissolvente. Cada coluna de uma colunata é cumulativamente um ponto e toda a extensão, uma determinação singular e a presença de um todo. A colunata é a anulação do tempo e expressão absoluta do lugar. É o presente, e é no presente que se ergue e permanece erguida, absorvendo o tempo e ligando o real e o ideal.