segunda-feira, 30 de abril de 2012

Registos de Cinema XIX, Terraferma de Emanuele Crialese, 2011



Turistas e imigrantes encontram-se numa ilha. Por razões diferentes. Os primeiros chegam em segurança e vão para se divertirem; os segundos chegam no limite da sobrevivência em fuga à miséria e à guerra. Os primeiros enchem a ilha e transformam o espaço público e a economia. Os segundos escondem-se na ilha mas transformam e expõem o carácter dos seus habitantes.

A comunidade autóctone deixa de depender da actividade primária, a pesca, para investir numa actividade terciária, ou seja industrial: o turismo. A transformação troca no essencial, produção por serviços. A geração de riqueza passa a estar toda na paisagem natural e nos serviços que os locais podem prestar aos turistas. De certa forma perdem a sua autonomia e auto-suficiência, ou antes, a sua coesão comunitária. Uma comunidade habituada a alimentar-se e a passar de geração em geração o saber correspondente ao seu mester passa a receber de fora as tendências do que deve vender, passa a vender a sua própria casa, o seu tempo e a correr o risco de surgirem, com a consolidação da actividade turística, forasteiros que venham tomar conta do negócio e a breve prazo até expulsá-los (pagando bem) do seu lugar.

Perante a chegada de imigrantes do norte de África, a comunidade tende a impor as suas leis, que são as leis do mar, do socorro ao próximo e da partilha do pão. Porém, a ilha faz parte de um território nacional cujas leis são impiedosas com a imigração clandestina e, por isso, as suas leis são subjugadas pelas leis do Estado. O conflito entre a tradição e a consciência formada por essa tradição e o Estado e a obrigatoriedade do cumprimento da lei sob pena de sofrer consequências, levou à desobediência de uns e à cedência às conveniências de outros.

Terraferma é terra firme para os imigrantes que ali voltam a contactar com a realidade palpável, segura, firme. Para os habitantes da ilha é o seu porto seguro no meio do mar. Para os turistas é um lugar de lazer, para sair do tempo e do espaço convencionais e habitarem uma terra firme mas irreal durante umas semanas. Também poderíamos chamar-lhe terra fechada, enclausurada, isolada, perdida do tempo e do espaço, perdida do mundo, um lugar onde se nasce e se morre sem se ter chegado a contactar com a realidade exterior. Um lapso de tempo, um lugar irreal.

Ainda assim, a presença humana transforma a vida natural numa vida mental, espiritual. Numa comunidade como a daquela ilha, os problemas humanos são observados e vividos à luz de princípios. Os princípios implicam uma prática, não se ficando pela indiferença e pelo passar ao lado como se fossem problemas que não nos dizem respeito. Mas também, perante a possibilidade de tirar partido da situação e já com o aviltamento que o dinheiro trás a quem não vive os princípios, logo se cindiu a comunidade entre os que querem o progresso e o turismo e entregam ou não salvam os imigrantes à deriva e os que querem continuar a viver do mar e recusam os horizontes do progresso mas correm todos os riscos na coerência da sua ética e salvam e escondem os imigrantes clandestinos.

É certo que pouco se consegue em ser contra o tempo e as suas tendências. A maioria é sempre gregária, cobarde e sem alma. Os que resistem individualmente são os heróis que estes tempos abominam. Mas nessa heroicidade está aquilo que resta da nossa humanidade. Por muito ineficiente que seja.

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