sábado, 7 de abril de 2012

Registos de Cinema XVII, Tabu de Miguel Gomes, 2012



1. Monte Tabu

Como o Paraíso, também não sabemos onde seja o Monte Tabu. O Paraíso é a idade de ouro, os melhores anos das nossas vidas, o tempo dos sonhos vividos: o tempo antes de haver tempo. O Paraíso Perdido é a idade das sombras, o tempo de penúria e o tempo de castigo pelo mal que fizemos, que deixámos fazer ou que não evitamos que se fizesse.

O filme é um regresso ao passado, a procura de apaziguar os sobressaltos de uma vida que se sente em dívida com os outros e consigo mesma. A procura de fazer as pazes, ou simplesmente, não deixar que tudo fique ignorado para sempre.

Poder-se-ia ter chamado ao primeiro capítulo Purgatório e ao segundo Do Paraíso ao Inferno, ou mesmo, Expulsão do Paraíso, pois, afinal, a convicção geral das personagens é religiosa.

O filme recusa o real sem ideal, não quer ser verosímil, quer invocar, narrar, encantar. Procura a beleza da criação artística e não a realidade tal qual é vivida. As suas personagens vivem mergulhadas numa ficção que é mais autêntica que qualquer comprovada ou factual realidade. Não vivemos todos numa ficção, que é a recriação das nossas vidas sonhadas? Por isso, um filme e uma música comovem Pilar (Teresa Madruga) que vive sozinha, recusando a intimidade com Luís, um pintor triste e velho, que a admira e pinta para ela, mas de quem ela nada mais quer senão a companhia para ir ao cinema.

2. Sinopse

Prólogo

Um explorador intrépido e decidido aventura-se pelo mato da savana de Moçambique. É um amante desesperado que corre para a morte e nada podendo fazer para recuperar a sua amante, se entrega a um crocodilo para ser devorado sob o olhar da amante defunta.

Parte I – Paraíso Perdido

Pilar vive em cuidados com a vizinha Aurora (Laura Soveral), uma mulher velha e rica, viciada em jogo de casino, que vive sozinha com a empregada, Santa (Isabel Cardozo), que acusa de lhe fazer macumbas e a prender em casa, e que raramente recebe visitas da única filha que tem, mas vive no Canadá e pouca atenção e carinho lhe presta.

A morte de Aurora é antecedida de um último de desejo de falar com Ventura (Henrique Espírito Santo) que Santa lê na mão de Aurora. Após o enterro de Aurora, Pilar, acompanhada de Ventura ouve, num centro comercial, a história escondida, silenciada e reveladora do pesadelo e da loucura de Aurora.

Parte II – Paraíso

Aurora (Ana Moreira), filha de um colono vive uma fazenda em Moçambique e é uma infalível caçadora. O marido (Ivo Müller), trabalhava grandes extensões de cultura de chá e ausentava-se amiúde. Aurora vivia num paraíso rodeada de empregados e de entretenimentos ociosos. Porém, a sua natureza bipolar foi-se revelando e uma inquietação nervosa estampava-se-lhe no rosto. É então, nessa fase, que surge Gianluca Ventura (Carloto Cotta) com outros amigos e que por ali trabalham e formam uma banda de música.

A tensão entre Aurora e Gianluca vai-se acentuando, e ambos acabam por propiciar encontros amorosos que ambos consideram criminosos pelo facto de Aurora estar grávida e aquela relação não ter futuro, além de estarem a enganar quem lhes merecia toda a confiança. Até à separação definitiva, depois de descobertos, ocorreram peripécias várias entre elas uma longa separação poderia ter deixado tudo no segredo mas o regresso de Gianluca tudo precipitou e conduziu à tragédia e à vergonha.

3. Da história

Histórias antigas que ensombram as vidas actuais . Histórias que se agigantam com a distância do tempo e do espaço e fazem de pessoas comuns personagens épicas, aquelas a quem estão reservados os grandes feitos e os grandes pecados. Personagens que, apesar da inquietude, parecem agora repousar em águas tranquilas, águas que se conhecem e não fariam suspeitar daquilo que fizeram,  aquilo que nos espanta e, mais grave, nos escandaliza. E depois, quando olhamos para essas personagens não conseguimos conceber como podem elas ter feito o que fizeram, não concebemos que a mesma pessoa que ali está, tão quieta e tão distante de outras loucuras, tenha sido a que fez o que fez. Aí, começamos a suspeitar que em cada um de nós pode habitar outro de nós, adormecido ou expectante, e esse outro divide-nos e desencaminha-nos e não mais nos deixará, não nos devolverá a ingenuidade perdida, essa forma de olhar o mundo e de acreditar nos outros que uma vez perdida não mais regressará para nos apaziguar e devolver a esperança, inquinando todo o futuro.

Os erros da juventude pagam-se na velhice. Mas pagam-se porque não nos largam, porque se tornam parte de nós próprios e quanto mais os abominamos mais eles são a nossa natureza. Aurora era desde nova um espírito alvoroçado e o seu permanente nervosismo, e a sua incessante inquietação, denunciavam um comportamento bipolar preocupante. O isolamento e a solidão fizeram o resto. Perante a manifestação do olhar de Gianluca Ventura que sobre ela repousava com insistência acabou um dia por se lhe entregar sem reservas, sem pudor e sem olhar a outras consequências. O tempero não foi apenas o picante do adultério, mas sim o facto de Aurora estar grávida, estar no início da gravidez e isso, de algum modo, condenar qualquer harmonia futura entre eles. Há coisas que pela destruição que provocam nunca permitirão qualquer reconstrução sólida e duradoura. Primeiro, porque matam o que está à volta e, depois, porque torna os amantes reféns um do outro pelo bem e pelo mal que se fizeram, e porque a sua intimidade é o seu segredo e nada o pode apagar ou fazer esquecer.

Esta é a história que devoramos ao longo de mais de uma hora depois de termos passado a primeira hora de volta de um mundo em derrocada, sem esperança, numa Lisboa moderna triste, desencantada e envelhecida, não só pelas personagens sós, mas pelo próprio claro escuro do preto e branco com que o autor tinge a tela e que é a sua visão da velhice ou da corrupção.

4. A estrutura narrativa

O filme progride através do diálogo, na primeira parte, onde as personagens vivem tristemente, com chuva e trovões mais um inverno da vida, já sem qualquer apego, esperança nem mesmo desejo de viver, arrastando-se todas sem alma numa assistência mútua e complacente; e, na segunda parte através de uma narração em voz off (apenas alterada na leitura das cartas em que cada um lia a sua), onde a história do passado, a tal idade de ouro que culminou em tragédia, é contada da mesma forma que as histórias de encantar são contadas às crianças, nessa idade de ouro que é a da infância e da ingenuidade.

O filme tem permanentes notas humorísticas. Discretas é certo, mas permanentes. Miguel Gomes tem esse sentido do sério e do ridículo e a sua pendular variação dá ao tom grave do filme um contraponto de leveza. Além disso, tem a beleza do preto e branco e das nuances do preto e branco, tanto no Portugal triste da velhice de Aurora, Pilar e Santa, como no Portugal alegre e radioso das terras de África onde Aurora e o marido, e Gianluca e Mário vivem tempos felizes.

Disse Miguel Gomes que não há um tema central e, de facto, há muitas histórias implícitas ou embutidas, que vão sendo apontadas e esboçadas e, sem juízos morais nem correcções políticas, fazem do filme uma história de amor e de dor, num ambiente moral próprio e sobre o qual não há sociológicas recriminações. Do que se trata é de pessoas e das suas paixões, crenças e mitos.

5. O crocodilo

Finalmente, a figura transversal de toda a trama: o crocodilo. O misterioso crocodilo: o crocodilo “dandy”, como lhe chamou Aurora. O crocodilo assume um papel mitológico por assim dizer. Primeiro, porque é a um crocodilo que um amante desesperado se entrega para ser devorado sob o olhar da amante defunta numa espécie de prólogo que antecede as duas partes do filme. Segundo, porque o marido de Aurora lhe oferece um crocodilo bebé no princípio das suas vidas de casados. Terceiro, porque o crocodilo fugiu e foi Gianluca Ventura que o encontrou no seu jardim. E, finalmente, porque após uma segunda fuga, Aurora foi logo procurá-lo ao jardim de Gianluca, decidida a provocar aí o seu primeiro encontro amoroso e o princípio do idílio e da tragédia.

Ora o crocodilo é um predador e um caçador. Como Aurora. De algum modo, o crocodilo, na sua quietude, está sempre preparado para um ataque mortífero. Como Aurora. Aurora chamou-lhe Dandy quando ele fugiu para a casa de Gianluca Ventura. Seria Aurora também uma dandy, ou estaria apenas possuída pelo espírito do crocodilo?

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