Coriolanus de Shakespeare, em versão contemporânea de Ralph Fiennes que co-assina o Argumento,
realiza e representa o papel principal ao lado de Vanessa Redgrave (Volumnia), Jessica Chastain (Virgilia) e de Gerard Butler (Tullus Aufidius), é uma obra de
registo híbrido. Nem recria a Roma do séc-V a.c., nem moderniza o discurso das
personagens fazendo-as representar como no século de Shakespeare apesar de
filmarem manifestações com telemóvel e seguirem a guerra em directo nas notícias da televisão.
Há
outro aspecto híbrido para além do registo, que é o cenário e o tempo. Um lugar
que também se chama Roma ao lado de umas terras de um povo que também se
chama Volscos, ou seja, que nem é Roma
nem são os Volscos e, por isso, são não-lugares de uma acção totalmente
desenraizada e inverossímil, cruzados com uma sensação de que não há um tempo
dos acontecimentos, quer dizer, que não há um devir histórico, e tudo se passa
numa pura arbitrariedade, fora do tempo e fora da realidade.
Tudo
isto é possível porque se trata de um texto de Shakespeare. E um texto de
Shakespeare, mesmo mergulhado na estranheza de estar fora do tempo e do espaço,
fora de um concreto devir, trata de assuntos que não carecem dessa situação.
Trata do modo como cada um se deixa dominar pelas paixões e como isso o conduz aos
conflitos de que não pode dizer-se vítima mas sim autor.
Nas
personagens de Shakespeare prevalece a liberdade individual na escolha do bem e
do mal, do belo e do feio, da verdade e da mentira. São as paixões a que cada
um se entrega e que o podem, ou não, dominar, que lhe definem o carácter e o
destino: porque a vida não é uma ficção sem consequências, mas sim uma realidade
que se projecta a partir de cada um e implica conflitos que não se evitam por
vontade. A racionalidade no homem, a racionalidade do espírito, sobrepõe-se ao
voluntarismo, aliás, submerge-o. O homem nada pode contra o poder das paixões
que o incendeiam, consomem e acabam por destruir.
O
moralismo é esvaziado pelo provérbio. Shakespeare não esconde as personagens
num discurso moral, pelo contrário, expõe-nas ao saber decantado dos provérbios,
que nos ensinam que para além do que presumimos saber, há um diabo que nos troca as voltas, e nos acaba por fazer saber que os avisos não eram juízos
morais que a nossa ousadia e atrevimento pretenderam contestar, mas provérbios
que o tempo já testou e que não vale a pena provocar. O avaro é vítima da
avareza, o curioso é vítima da curiosidade, o cobarde é vítima da cobardia,
etc.
Em
“Coriolanus”, o auto-investimento do poder e o seu exercício sem contemplações,
sem paciência, e sem partilha com os outros, conduziu Caius Marcius à situação frágil
e desprotegida dos que estão sós e rodeados pela inveja, o medo e a vergonha dos
fracos. Foi-lhe fatal.
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