Inverno e hibernar têm semelhanças fonéticas como se hibernar fosse a acção do inverno; Sono pode ser um dos sinónimos do estado de hibernação, dormir pode ser hibernar ou vice-versa.
A acção de Sono de
Inverno decorre entre poucos quilómetros de várias distâncias, distâncias
que os homens correm, vencem a pé quando necessário, sem um esforço tão grande que
os impeça. Essas poucas distâncias são a geometria de uma pequena sociedade
isolada do mundo, de um mundo de que recebe os seus ecos mas sem a sua presença, um mundo
distante que pode quase ser irreal, de sonho, ou de perdição. Na aldeia vive-se
a realidade das rotinas e dos conflitos, vive-se a presença do tempo lento e
dos corpos que se enfrentam, quase sem protecção e que se contêm no instinto da
sobrevivência. Um jogo a roçar os limites da provocação e do poder contra a
tolerância, a indiferença e a abdicação de si. Vive-se e representa-se no afã
de personagens que não querem dar-se à luz, mas que persistem nas suas
máscaras, jogando e sonhando sem qualquer desejo de realidade ou concretização.
Vidas suspensas. Em hibernação.
O inverno é a capa, feita de neve, de uma neve que dissolve
e apaga a humanidade da crosta terrestre e a remete ao útero primitivo, à gruta, às grutas dentro das quais as casas da aldeia são construídas. A neve é a rede que mantém
agrupados os prisioneiros do tempo e do espaço infinitos. A casa é o lar, o
fogo, a protecção. Perdê-la seria perder tudo, sobretudo, naquele inverno e naquela neve
que apaga e branqueia as diferenças.
Mergulhadas no isolamento, as personagens irrompem da
escuridão e da dissolução, através das palavras o sono é vencido pela vigília,
o diálogo que une os seres convoca as memórias e a vida. A palavra supera o
sono, o esquecimento e a morte. Como uma luz que alumia por dentro, a palavra,
a sucessão de palavras, as frases, os diálogos, propõem uma revelação, uma
consciência e o jogo inicia-se.
As palavras servem para compreender e humilhar, para se
compadecer e para acusar, servem para cada um se dissimular, ou se queixar;
servem para trazer o que se esconde na alma para a comunhão da mesa. Um
personagem, velho, vai totalizando os diálogos: com o aventureiro que viaja de mota sem
destino; com o Imã submisso que não se consegue afirmar e se desfaz em
desculpas e mortificações; com a irmã que se escondeu da vida e do mundo mas
vive arrependida de ter deixado o marido; com a mulher que desiludiu sem a ter
querido iludir e que o recrimina pela sua solidão; e, finalmente, com a
tertúlia do seu amigo que o recebe em sua casa e com quem fica com outro
conviva a discutir a consciência humana, a sinceridade dos homens e a
consequência entre pensamentos e actos. Por fim, regressa a casa e senta-se a
escrever para a eternidade a História do Teatro Turco.
Estará Nuir Bilge Ceylan a escrever uma metáfora sobre a Turquia actual? Seja pela hesitação do mundo rural perante o mundo urbano;
seja pela abdicação da viagem; seja pelo isolamento consentido, procurado; seja
pela persistência de uma cultura clássica universal (o teatro) e de uma
tradição ancestral (religião) que não se querem rejeitar nem se conseguem
abraçar?
Pretenderá ir mais além de um drama de costumes ou de
um conto moral, à la Rhomer? O homem recrimina a mulher que recrimina o homem
no choque dos seus imaginários e das suas expectativa quase sempre frustradas;
o senhor e o escravo digladiando-se através de terceiros – o filho do segundo
ou a mulher do primeiro – numa
luta pelo poder moral; o Imã que, fiel à paz e à concórdia, está sempre pronto
para o sacrifício do seu orgulho ou da sua vontade; a criança que ferve em ódio
inculcado pelo pai que se deixou humilhar por não se deixar humilhar; a irmã e
o irmão reunidos na casa-mãe interceptando pensamentos e uma certa educação que
seguiu caminhos diferentes e até antagónicos mas que mutuamente se provocam
pelo sentimento do que perderam; os amigos numa tertúlia que o vinho vai aquecendo
até ao ensaio de um conflito que o corajoso vinho faz brotar mas que logo se
apazigua numa evasão ou num vómito; ou o regresso a casa sem glória desistindo
de pelejas e futuros irreais mas ausentando-se do fluir do tempo para lhe
deixar uma História do Teatro Turco.
Ou estará concentrado nos conflitos humanos,
mais do que na sua moral ou nos costumes que lhe dão sustento, conflitos que
são o fulcro de toda a humanidade. Por vezes parece que estamos a ver Ingmar
Bergman, o mestre sueco que da periferia norte da Europa se vem encontrar com Nuir Bilge Ceylan da periferia do Sul. E mais do que os interesses das pessoas e
dos seus conflitos entramos no conflito das ideias que as personagens encarnam:
o amor, a consciência e o castigo. O amor surge no debate sobre o castigo.
Castigar é impedir a consciência do arrependimento; dar a outra face é permitir
a iniciativa da emenda, da correcção introspectiva e definitiva. O amor não
pune, deixa descobrir, sem pressa.